29 de maio de 2019. Mais um crime evitável. Mais um homicídio evitável. Estamos falando da brutalidade ocorrida em Planaltina de Goiás (Brasilinha). Quatro crianças negras, sendo três meninas, foram torturadas e uma das meninas veio a óbito. Os agressores é um jovem de 19 anos e uma adolescente de 17 anos. O jovem é tio das crianças. O pai e a mãe das vítimas estão encarcerados, por possível posse de maconha. Possuem entre 25 e 30 anos. São negros e pobres. Moravam em Planaltina (DF).
A justificativa para violência é de que as crianças foram pedir comida para a vizinha e o jovem sentiu-se ofendido. Estou falando de uma família que estava em situação de miséria. Estou acusando o Estado de ser negligente em suas políticas públicas. Quero que todos e todas nós saibamos que fazemos parte. É a nossa falência e também do Estado.
O que leva uma adolescente e um jovem a essa crueldade? Por que as crianças estavam sob os cuidados de uma adolescente e um jovem e sem qualquer acompanhamento dos serviços de proteção, como o Conselho Tutelar? Por que seu pai e sua mãe estavam presos por possível posse de quantidade irrisória de maconha? Por que essas crianças estavam passando fome?
São essas e inúmeras outras questões que não saem da minha cabeça. Convido vocês a refletirem sobre as violências invisibilizadas, naturalizadas que chegam a outras violências. O racismo e o machismo são transversais a essa barbárie. O nosso “vitimismo” – como somos acusadas diariamente pelos conservadores que hoje governam o nosso país, o Estado de Goiás e o Distrito Federal – não foi suficiente para que salvasse oito vidas. São as vidas das quatro crianças, de uma adolescente e de três jovens. Não me venham acusar de ser defensora de “assassinos” porque vocês também fazem parte.
Sim. Temos responsabilidade coletiva por aqueles e aquelas que passam fome, que estão em situação de miséria. Isso se chama solidariedade. O cuidado com crianças e adolescentes é dever da família, do Estado e da sociedade (art. 227, da Constituição Federal de 1988). O pai e a mãe foram vítimas do motivo que mais encarcera a juventude negra no Brasil: uma política de drogas falida, criada para matar e prender pobre e preto.
São oito vidas marcadas pelo racismo estrutural que nos coloca à margem do acesso a políticas públicas de habitação, assistência social, educação e saúde. Um racismo estrutural que nos apresenta somente a política da segurança pública repressora. E um machismo que empoderou esse jovem a dominar as vidas das crianças como se fossem suas propriedades, torturando-as até a morte por pedirem ajuda. As mais agredidas foram as meninas.
Esse crime nos apresenta como falência estatal. Evidencia a não compreensão de crianças como sujeitos que possuem direitos humanos, a desproteção da rede na área da infância, a ausência de políticas públicas preventivas. Prevenção é proteção. O triste caso escancara a omissão das pessoas que viram a situação dessa família e, por algum motivo, não tiveram solidariedade, mesmo que inconscientemente. Nós naturalizamos a pobreza.
Falhamos. Todos e todas nós. Nossas vidas só importam para eles no encarceramento em massa da população negra e nas pilhas de caixões que se formam com os nossos corpos… E se não revertermos a atual conjuntura política brasileira, a tendência é de que crimes como esse se tornem cada vez mais comuns.
Entenda, você faz parte.
* Keka Bagno é assistente social e conselheira tutelar no Distrito Federal