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Reforma tributária: Lula entrará “no momento certo”, diz Appy

Secretário da reforma tributária garante que tema é prioridade do governo Lula e admite ajustes para diminuir resistência de alguns setores

atualizado

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Valter Campanato/Agência Brasil
Bernard appy
1 de 1 Bernard appy - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não venha se manifestando enfaticamente em defesa da reforma tributária, o governo não poupará esforços para aprovar a proposta ainda neste ano. A avaliação é do secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, para quem a entrada de Lula no debate se dará na hora mais importante.

“O presidente vai entrar quando for o momento certo no debate político. Mas a reforma é prioridade do governo. Isso é muito claro, é só ver as declarações do ministro Fernando Haddad sobre o assunto. Eu acho que aprovaremos, sim, em 2023”, afirma Appy, em entrevista ao Metrópoles.

O economista, de 61 anos, foi convidado a integrar o governo em dezembro do ano passado, antes mesmo da posse de Lula. Não é a primeira vez que ele participa de uma administração petista. Appy foi secretário-executivo e de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante a gestão do ex-ministro Antonio Palocci (2003-2006), no primeiro mandato de Lula, e em parte da gestão de Guido Mantega, até 2008.

Appy é autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019, protocolada na Câmara pelo deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP). É o projeto em estágio mais avançado no Congresso entre aqueles que tratam de mudanças no sistema tributário.

O texto prevê a extinção de diversos tributos federais, estaduais e municipais que incidem sobre bens e serviços, como ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins. Essas taxas seriam substituídas por um único tributo, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) – possivelmente com alíquotas de 9% para a União, 14% para estados e 2% para municípios, totalizando 25%.

O objetivo da reforma é simplificar a cobrança, diminuindo a incidência sobre o consumo e levando à uniformidade da tributação. Atualmente, o país convive com diferentes legislações federais que incidem conjuntamente com 27 regulamentos estaduais de ICMS e inúmeras normas de ISS (imposto municipal), editadas pelos milhares de municípios brasileiros.

Para Appy, setores da economia que criticam o IVA – como o de serviços e o agronegócio, que hoje pagam alíquotas mais baixas e temem o aumento da carga tributária – serão beneficiados “no longo prazo” com o crescimento econômico do país.

“Todos tendem a ser beneficiados. Ainda assim, sabemos que, no Congresso Nacional, a tendência é que haja algum ajuste setorial para viabilizar a aprovação da reforma. Acho que é uma construção política para mitigar resistências de determinados setores.”

Leia os principais trechos da entrevista concedida por Bernard Appy ao Metrópoles:

A reforma tributária vem sendo discutida no Congresso há décadas, mas nunca foi adiante. Por que é tão difícil aprová-la?

Na verdade, de fato, a reforma nunca foi prioridade política do Executivo e do Legislativo. Historicamente, o principal motivo foi a resistência dos estados à reforma tributária. Outro ponto é que as pessoas ainda não tinham noção do quão nocivo é o nosso sistema tributário para o crescimento da economia brasileira. De alguns anos para cá, avançamos em vários sentidos. Primeiro, hoje há uma percepção muito mais clara da sociedade de que o sistema tributário brasileiro tem um custo excessivamente elevado para o país. Segundo, a discussão sobre a reforma avançou em termos técnicos, a partir das propostas apresentadas na Câmara (PEC 45) e no Senado (PEC 110). Na minha avaliação, o governo passado (de Jair Bolsonaro) teria tido uma chance bastante razoável de aprovar a reforma se o Executivo tivesse dado prioridade ao projeto, o que não aconteceu. Hoje, a reforma é prioridade no Executivo, no Congresso Nacional e na sociedade como um todo.

Em entrevista ao Metrópoles, em novembro, o senhor disse que o governo precisava pôr o “capital político” em campo para aprovar a reforma tributária ainda no primeiro ano de mandato. O presidente Lula pouco tem falado no assunto. Ele está fazendo a lição de casa? A reforma sai mesmo em 2023?

O presidente vai entrar quando for o momento certo no debate político. Mas a reforma é prioridade do governo. Isso é muito claro, é só ver as declarações do ministro Fernando Haddad sobre o assunto. Eu acho que aprovaremos, sim, em 2023, exatamente por essa conjunção de fatores que eu citei. Temos um ambiente positivo no Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira, deixou claro que a aprovação da reforma tributária é prioridade para ele. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, também tem dado declarações nesse sentido. E, como eu falei, existe uma percepção na sociedade de que é necessário fazer essa mudança no sistema tributário.

O senhor disse que a reforma do Imposto de Renda (IR) era mais difícil do que a tributação sobre o consumo. Quais são as dificuldades? É possível aprová-la no segundo semestre, como quer o ministro Fernando Haddad?

Como ainda não há um projeto fechado de governo em relação à reforma do IR, não temos como dizer quais serão as maiores dificuldades. Mas a expectativa do governo é mandar a reforma do IR logo depois da aprovação da reforma do consumo e buscar sua aprovação no Congresso Nacional no prazo mais curto possível. Se vai ser possível neste ano ou só no ano que vem, não sei dizer.

Setores importantes da economia brasileira, como serviços e o agronegócio, têm criticado o Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Eles alegam que haverá forte aumento da carga tributária e pedem tratamento diferenciado. Como resolver esse problema?

É preciso entender que a reforma tributária é um jogo de soma positiva. Os estudos disponíveis mostram que a aprovação da reforma tenderia a ser positiva para praticamente todos os setores da economia brasileira. Isso sem considerar uma parte relevante de seus efeitos positivos sobre o crescimento econômico do país… Todos tendem a ser beneficiados. Ainda assim, sabemos que, no Congresso Nacional, a tendência é que haja algum ajuste setorial para viabilizar a aprovação da reforma. Acho que é uma construção política para mitigar resistências de determinados setores. A forma exata como isso será feito será discutida e definida pelo Congresso. Entretanto, é importante que se tenha a compreensão, no debate político, de que, por ser uma reforma que tem um efeito positivo sobre a economia como um todo, ela certamente trará um resultado positivo também para os setores que hoje acham que serão prejudicados.

Há uma corrente de economistas que defende a tributação sobre os super-ricos. O que o senhor pensa sobre isso?

Esse é um tema que será discutido na reforma do IR. Existem falhas no desenho do IR brasileiro que precisam ser corrigidas. Essas distorções fazem com que uma parcela de pessoas de alta renda seja pouco tributada no país. Mas esse é um tema da reforma do IR que virá no segundo semestre.

O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, o chamou de “técnico autoritário” por defender o fim do Imposto sobre Serviços (ISS). Por que acabar com o imposto municipal?

Na verdade, manter a separação entre ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, que é estadual) e ISS, que é a proposta dos grandes municípios, tem um efeito muito negativo sobre o crescimento da economia. Você mantém a maior parte da cumulatividade, tem um efeito negativo sobre a competitividade da produção nacional, onera investimentos e ainda gera problemas federativos sérios e insegurança jurídica. Vou dar um exemplo hipotético. Hoje, você compra um produto feito numa fábrica – uma caneca, por exemplo. Daqui a pouco, você vai conseguir “fazer” a mesma caneca em uma impressora 3D. E aí vão dizer que isso é tributado como serviço. Você vai ficar discutindo a caracterização, se é mercadoria ou serviço, porque isso muda a tributação. A nova economia é incompatível com essa separação da tributação de mercadorias e serviços. Tem que ter uma tributação uniforme. O Brasil é o último país com relevância econômica que ainda separa a tributação de mercadorias e serviços. Os grandes municípios têm essa preocupação, que é legítima. O governo aceita discutir com eles, mas gostaria que a discussão fosse feita com base em alguma alternativa que não fosse a manutenção do ISS separado do ICMS, porque isso é muito ruim para a economia como um todo.

De que maneira a reforma tributária pode aliviar a “guerra fiscal” entre os estados?

A guerra fiscal é resolvida com a tributação no destino. Quando você tem tributação no destino, não há guerra fiscal. A tributação na origem significa que o consumidor do estado A está pagando uma parte do imposto do estado B. E o estado B dá benefício para uma empresa se instalar lá, reduzindo a carga paga pelo consumidor do estado A. Quando você tem a tributação no destino, o imposto do consumidor do estado A pertence integralmente ao estado A. Então, você não tem o uso da tributação como forma de atrair empresas, por exemplo. Para suprir o fim da guerra fiscal como instrumento de desenvolvimento – e é um instrumento muito falho, diga-se de passagem –, a reforma tributária propõe que, em vez do uso de benefício fiscal, haja um fundo de desenvolvimento regional, que seria uma alternativa muito mais eficiente. Obviamente, esses recursos serão direcionados de forma a favorecer, sobretudo, os estados menos desenvolvidos da federação. Vamos substituir um instrumento ineficiente de política de desenvolvimento, que é a concessão de benefícios fiscais, por um instrumento eficiente, que é a alocação de recursos orçamentários na exploração de vocações regionais.

Há alguma medida em análise para garantir que estados e municípios não tenham perda de arrecadação com a reforma?

Isso será feito por meio de uma transição extremamente longa na distribuição da receita para os estados e municípios. Pela PEC 45, seria uma transição em 50 anos e, pela PEC 110, em 40 anos. No caso dos estados, hoje, a receita líquida deles é 75% do ICMS e, no caso dos municípios, é a receita de ISS mais a parcela do município na cota-parte do ICMS, que dá 25% (a Constituição determina que os Estados repassem aos seus municípios 25% da receita arrecadada com ICMS). Você terá uma transição bem longa entre a distribuição atual da receita e a distribuição que resultará da reforma tributária. Com essa transição e com o efeito positivo da reforma sobre o crescimento, praticamente nenhum ente da federação será prejudicado. Todos ganharão no longo prazo.

O acordo entre o Ministério da Fazenda e os estados que prevê R$ 26,9 bilhões para compensar perdas de arrecadação com a redução da alíquota do ICMS sobre combustíveis facilitará o andamento da reforma tributária?

Era um item que estava em aberto. Alguns estados estavam condicionando avançar com a reforma tributária à solução desse problema. Essa solução tira um item da pauta que era anterior à discussão da reforma tributária. Acho que ajuda, sim.

A reforma deve prever a devolução parcial do imposto pago pela população de baixa renda, de forma progressiva, por meio de um mecanismo chamado “cashback”. Como vai funcionar?

O detalhamento do mecanismo ainda não existe. Está sendo discutido. O que precisa entrar no texto constitucional é só o princípio, que é a possibilidade de devolução do imposto para a parcela de menor renda da população. Agora, o detalhamento de como isso vai ser feito ainda está em discussão. Nós temos um grupo de trabalho estudando o assunto, analisando as experiências internacionais, avaliando os prós e contras e considerando o que é possível fazer com a tecnologia já existente no Brasil. Mas a definição de qual será o público-alvo, o montante de imposto, o teto de devolução de imposto para esse público-alvo, como vai ser implementado, tudo isso será definido depois da lei complementar. E vai passar pelo Congresso Nacional. A palavra final sobre esse desenho será do Congresso. O nosso trabalho é avaliar, do ponto de vista técnico, qual é o melhor desenho possível.

O senhor não acha que os brasileiros já pagam muito imposto? Por que ninguém fala em diminuir o Estado, em vez de aumentar a carga tributária?

A quantidade de imposto paga por um país é definida pelo tamanho do Estado que o país quer ter. Não adianta querer ter todos os benefícios que se tem hoje e uma carga tributária menor. No fundo, é uma decisão política sobre o tamanho do Estado e como será financiado esse Estado. Não sei se a carga tributária aqui é alta, mas nós temos duas bases que são muito tributadas, que são consumo e folha de salários, e duas bases que podem ser mais bem tributadas, renda e patrimônio. A questão do tamanho do Estado é definida do lado do gasto. É uma decisão política sobre o tamanho desse gasto. A decisão de como ele será financiado, aí sim, se refere à composição da carga tributária. O que a reforma da tributação do consumo dá é muita transparência sobre qual é o custo para a população dos tributos indiretos. No curto prazo, pela situação fiscal do país, não tem como reduzir a tributação. Então, a reforma tributária mantém a carga tributária sobre o consumo. Mas ela faz isso dando maior transparência e abrindo espaço para que, a partir de um tributo extremamente transparente, se possa discutir o quanto se quer financiar a atuação do Estado via tributação do consumo, da renda e do patrimônio. Essa é uma decisão política que poderá ser tomada mais adiante, a partir de uma base bem mais transparente.

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