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“Guerra dos chips” entre EUA e China impõe novo desafio ao mundo

Além da inflação e dos juros em alta, a disputa tecnológica entre os dois gigantes globais pode elevar o preço dos produtos, diz economista

atualizado

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Nas primeiras gerações de eletrônicos, lançadas nos anos 1970, cada produto tinha um chip. Hoje, apenas um carro elétrico usa cerca de 2 mil desses dispositivos. Com base nessa comparação, fica fácil entender a importância dos semicondutores, o nome pomposo dos chips, no planeta agora e no porvir – eles são, e serão ainda mais, onipresentes.

Não por acaso, essas minúsculas peças, os motores da “era da digitalização”, ocupam o centro da geopolítica global, numa disputa que opõe, de um lado, os Estados Unidos e a China, do outro. E quais as consequências desse confronto para o mundo em geral e para o Brasil em especial?

“De imediato, serão mais pressões sobre os preços dos produtos”, diz o economista Otaviano Canuto, membro do Policy Center for the New South, com sede no Marrocos, ex-vice-presidente do Banco Mundial e ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI).

A seguir, trechos da entrevista que Canuto concedeu ao Metrópoles.

Qual é o objetivo dos EUA com essa “guerra dos chips”?

É bloquear o acesso da China a esses dispositivos em suas versões mais avançadas e proibir a venda de equipamentos para que os chineses os produzam. Essa é a tônica central da política dos EUA para o país asiático.

E temos aí uma guerra?

Sim, os chips substituem as armas e os exércitos nos campos de batalha, como já ocorreu em outras versões da “guerra por procuração”, em inglês, “proxy war”, como no confronto entre os EUA e a União Soviética, no século passado.

O senhor limitou a disputa a “chips mais avançados”. Quais?

São os menores, com grande capacidade de processamento, com tamanho entre 3 e 14 nanômetros, sendo um nanômetro equivalente a um bilionésimo de 1 metro. Essa é medida da largura entre transistores dentro do chip. Os maiores, acima de 14 nanômetros, são mais fáceis de serem produzidos.

E quem controla esse mercado hoje?

Taiwan e a Coreia do Sul são únicos países que dominam a tecnologia de fabricação. Eles detêm 50% do mercado global. Os americanos ficam com 12%. Por outro lado, muitos estágios do processo de produção dos chips dependem de tecnologias americanas, o que inclui os equipamentos necessários para produzi-los.

Mas, nessa disputa global, os chips representam um meio, a ponta de lança. O fim seria a tecnologia como um todo?

Sim. Os chips, principalmente esses menores, cumprem um papel essencial em toda a tecnologia de última geração, o que inclui o 5G nas telecomunicações, além dos serviços em nuvem e da inteligência artificial. Eles são uma ferramenta essencial para todo o processo de digitalização pelo qual o mundo atravessa.

E o confronto contra os chineses representa um dos poucos pontos de consenso entre democratas e republicanos. Mas no que as medidas do atual presidente americano, Joe Biden, diferem das adotadas por seu antecessor, Donald Trump?

Sim, nessa questão, há uma convergência muito grande entre os dois partidos, mas o estilo de Biden é diferente. Trump jogou tarifas em tudo, iniciou uma guerra comercial, com uma agenda bilateral, opondo diretamente EUA à China. Biden não aliviou em nada essa postura, não reverteu nenhuma medida do antecessor, mas foca na tecnologia. Ele também tenta engajar a Europa na disputa.

Essa tentativa pode prosperar?

A ver. Existem posturas diferentes em relação à China dentro da Europa. Os alemães, por exemplo, têm no mercado chinês um importante consumidor de suas máquinas e equipamentos. Mas essa é uma questão em aberto.

Qual a provável consequência dessa guerra para o restante do mundo?

A mais óbvia é o encarecimento dos produtos. É provável que a fabricação de muitos itens, principalmente eletrônicos, tenha de se deslocar da China. Isso vai mudar a configuração da cadeia produtiva de muitas indústrias.

E como essa mudança encarece a produção?

O atual desenho das cadeias produtivas globais é assim porque esse formato e mostrou o melhor na relação entre custo e benefício. Se isso for alterado, as empresas terão despesas maiores na produção. Dai, preços mais altos.

Mas alguns países podem se beneficiar com o deslocamento dessas empresas?

Alguns podem, como os que forem eventualmente abrigar novas indústrias. Mas o conjunto da economia mundial vai perder.

Quanto a China perde?

Ela vai ter de construir seu caminho no setor de tecnologia, sem se apoiar nas empresas americanas. A Huawei, por exemplo, de fato faz equipamentos de telecomunicações muito competitivos. Mas a operação dessas máquinas precisa de uma plataforma. E a empresa vinha usando o Google para isso. O Trump barrou. O corte de acesso foi um tremendo baque para a companhia. Agora, ela vai ter de construir a própria escada. E isso não é trivial. Até aqui, os chineses usaram muito bem a globalização e fizeram a lição de casa com investimentos em capacitação. Mas nesse nível de inovação é coisa diferente. É muito mais difícil.

E qual é a situação do Brasil nesse contexto?

Não tem milagre nessas coisas. O Brasil está fora do jogo no que diz respeito a semicondutores. Mas toda essa questão tecnológica, associada à transição de uma energia baseada em combustíveis fósseis para outra fundada em fontes mais limpas, aumenta fortemente a demanda global por insumos para esses produtos. O mundo vai precisar de muito cobre, níquel, cobalto e lítio, por exemplo. O Brasil pode se beneficiar disso, porque tem reservas de muitos desses minerais.

Mas o quanto isso pode ser bom para o país?

Como acontece em todos os casos de uso de riquezas naturais, o que vai definir se isso será uma oportunidade ou um problema é a qualidade da governança na exploração dessas matérias primas. Na República Democrática do Congo, que detém 70% das reservas mundiais conhecidas de cobalto, o processo de produção é tão selvagem que inclui semiescravidão até milícias russas.

E não há uma “saída via chip” para o Brasil?

A distância da fronteira tecnológica é grande. Se se fosse tentar forçar a barra enfiando chips locais na produção nacional, haveria um ônus para os usuários enquanto a diferença permanecesse, supondo-se que viesse a cair num horizonte razoável, algo longe de ser garantido. Temos mesmo é que fazer um montão de tarefas domésticas até sermos capazes desse tipo de sonho.

Quais tarefas? 

Coreia do Sul e Taiwan estão lá como momento avançado no cumprimento de ações na capacitação tecnológica local, na infraestrutura, no ambiente de negócios e na formação de mão de obra qualificada em volume. É isso que explica porque esses países não ficaram presos na armadilha da renda média e nós ficamos. O salto para o Brasil nessa área seria muito alto hoje.

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