Conceição Freitas

Os homens e as mulheres que construíram Brasília tinham entre 20 e 39 anos e muitos eram ainda mais jovens. Compunham a metade da população de 64 mil habitantes, segundo o Censo Experimental de 1959. Um terço dos candangos estava entrando na fase adulta da vida, tinha entre 20 e 29 anos. (E, ao contrário do que se imagina, 22% dos que moravam em Brasília um ano antes da inauguração eram candanguinhos, tinham entre 0 e 9 anos).

Aqueles que pegaram no pesado têm, portanto, acima de 80 anos. E muitos deles, não se sabem quantos, continuam em Brasília e dentre esses não poucos moram em abrigos de idosos. Um deles, o Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, em Sobradinho, registrou em papel a memória dos abrigados que participaram da construção da nova capital ou que chegaram nos primeiros anos da cidade. A história deles compõe a Agenda 2020 da instituição.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rafaela Felicciano/Metrópoles

Foram 12 candangos, um para cada mês. Dentre eles, Alice Pereira da Silva, 86 anos, Teresinha Rosa de Jesus, 75 anos. As duas foram empregadas domésticas nos primeiros anos da capital. Viram a utopia pelo lado avesso, num tempo em que não tinham direito a carteira assinada e morando em DCEs (dependências completas de empregadas) feitas pela arquitetura moderna e muitas delas projetadas por arquitetos humanistas, quando não, comunistas.

“Era uma cama e um banheiro. Guarda-roupa? A gente pendurava a roupa nas malas”, relembra Alice que trabalhou para um deputado federal cearense num apartamento da 105 Sul, uma das primeiras quadras a serem construídas, com forte inspiração nos projetos do Parque Guinle, no Rio, obra de Lucio Costa. Os blocos da 105 foram projetados por Hélio Uchôa, arquiteto que fazia parte da equipe do urbanista.

Os apartamentos eram grandes, diz Alice, reforçando com a voz a ideia de grandeza. “Eles (os patrões, as visitas) ficavam pra lá e eu pra cá, na cozinha”. Uma das famílias para quem trabalhou tinha quatro filhos, mas não se ouvia quase barulho deles, porque a porta da área de serviços ficava sempre fechada.

Candanga vinda de Angelim, no semiárido pernambucano, Teresinha Rosa de Jesus, 75 anos, trabalhou de doméstica na casa do então presidente do Banco do Brasil, Camilo Calazans, na limpeza de uma das sedes e, por último, como ascensorista. O patrão não a chamava pelo nome – optou por “dona Moça”.

A pernambucana queria mais do que ser “dona Moça”. Fez um curso de ascensorista e foi pilotar os elevadores da Sede 2 do BB. “Eles ficavam procurando as mulheres que tinham mais aparência. Eu me vestia muito bem e pisava direitinho no salto. Tem gente que não sabe andar de salto. Eu tirava em primeiro lugar, acho que sou até exibida”.

Todo candango é exibido, candango que é. É uma condição atávica de quem participou, de um jeito ou de outro, da construção da nova capital de um país. Assim era, candango exibido, o italiano Ugo Buresti, morto aos 97 anos no Lar dos Velhinhos Maria Madalena, no Núcleo Bandeirante, onde viveu durante 12 anos, desde os 85. Mudou-se com a mulher para a ala destinada aos de classe média, por decisão própria. Os dois estavam precisando de cuidados. Eponina morreu em 2007 e Ugo, quatro anos depois.

Ugo Buresti deixou um livro, “Reminiscências soltas… (e até líricas) de um candango”, memória do tempo da construção de Brasília, desde 1957 quando aqui chegou. Na primeira noite, o italiano teve que aprender que na Cidade Livre o dinheiro não comprava tudo. Havia algo, naquele instante e lugar que valia mais que a moeda. Deu-se assim:

O italiano chegou ao único hotel da Cidade Livre, o Souza, “um barracão feito de péssimas tábuas de pinho sobrepostas, com buracos por onde passava um punho”. Havia só dois quartos, cada um com cinco colchões de palha jogados ao chão. O estrangeiro tinha dado sorte: ainda havia um colchão vazio. Cheio de si, quis ficar sozinho no cômodo. Propôs pagar a diária correspondente aos outros quatro hóspedes. “Recebi a primeira gargalhada na cara… Onde os outros iam dormir? Baixei a cabeça envergonhado”.

No começo de dezembro, um outro candango exibido de glórias pioneiras, Geraldo Leandro da Silva morreu aos 80 anos, no Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes. O mineiro de Conceição do Mato Dentro era armador da construção civil, aquele que faz as armações de ferro de sustentação das estruturas de concreto. Ajudou a erguer o 28 (as duas torres do Congresso), a Rodoviária, o Itamaraty, o Palácio da Alvorada e o Banco do Brasil. Seu Geraldo tinha concretas e monumentais razões para ser um candango exibido. Seu testemunho está na Agenda 2020 do Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes. Não deixou nenhum outro registro do feito heróico.

Onde comprar a agenda:

Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, Qd 14, AE 1, Sobradinho, fone: 3591 3039

Feira da Torre, banca 365

Loja do Bem, Sobradinho Shopping, Papelaria ABC (SIG)

Teresinha Rosa de Jesus, 75 anos, de Angelim (PE)

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rafaela Felicciano/Metrópoles

“Eu tinha 17 anos quando vim para Brasília. Vim pra ficar com meu irmão, porque a mulher dele ficou doente. Vim pra cuidar das crianças e ficar morando com minha cunhada até que ela ficasse boa. Ele era supervisor da vigilância do Banco do Brasil.

Primeiro, trabalhei na limpeza no banco. Um dia, o chefe da limpeza:

— Tô necessitado de uma pessoa para ir para a casa do presidente (do BB) e me indicaram você. Que você é uma cozinheira de mão cheia.

Antes de eu entrar pra cozinha (da casa de Camilo Calazans), tinha ido umas seis, e nenhuma deu certo. Eu fui num sábado. Eles estavam saindo pra fazenda. Lá vem a mulher dele:

— Dona Teresinha.

— Senhora.

— A gente chega para o almoço às três horas.

— A senhora quer que eu faça o quê?

— Vai na geladeira e veja, o que a senhora fizer está muito bem.

Aí fiz o frango, só não botei cheiro-verde porque eles podiam não gostar desse tipo de coisa. Quando foi três horas, eu já tinha botado a mesa, tava tudo pronto. O frango, o arroz. E eles gostavam de rapa de arroz. Eu sabia que todo nordestino gosta. Deixei o arroz pregar um pouquinho (no fundo da panela). Ele chamava ela de ‘mãe’.

— Mãe, se você for na cozinha, não quer sair mais.

tinha feito pudim de sobremesa. Quando já estava quase no final, ele me chamou:

— Dona Moça, faça o favor de vir aqui. Você já almoçou?

— Ainda não.

eu tremendo, será que é pra me dar bronca?

— Pode sentar aí. Mãe, essa aqui tirou em primeiro lugar, está contratada.

Mas eu era contrata pela empresa, não por ele.

Sabe quantas assinaturas eu dei pra ir trabalhar na casa dele? 15, de termo de responsabilidade e confiança. Fiquei três anos. Aí fiz curso de ascensorista no Conic e fui trabalhar na Sede 3 do banco. A gente tem que ser esperta. Naquele tempo não tinha seguro-desemprego. Precisei de uma carta de recomendação. Fui à Sede 3, mas não me deixaram subir. Falei pro ascensorista:

— Me leva no 24, que era o andar do presidente.

— Não pode.

— Dá licença, e peguei o telefone do elevador.

Liguei e dr. Camilo atendeu.

— Bom dia, doutor. É dona Moça. O vigilante não quer deixar eu entrar. E ele:

— Pode deixar ela entrar, subir até onde quiser e pelo tapete vermelho.

Entrei no gabinete dele.

— Dona Moça, qual o motivo de sua visita?’. E eu:

— Em primeiro lugar para ver o senhor. Em segundo lugar ‘dá pro senhor assinar isso aqui?’. (Era a carta de recomendação para apresentar na empresa onde ela seria contratada como ascensorista do Banco do Brasil). Ele pegou o papel da minha mão:

— Assino não só essa daqui, como até duas ou três que a senhora precisar.

Eles ficavam procurando as mulheres que tinham mais aparência (pra ser ascensorista). Eu me vestia muito bem e pisava direitinho no salto. Tem gente que não sabe andar de salto. Eu tirava em primeiro lugar, acho que sou até exibida.

Fiquei muitos anos no elevador. É bom. Conhece muita gente. Conheci Silvio Santos, Antonio Fagundes, Elba Ramalho. Até que me atacou a dor de cabeça e tive um AVC no elevador. Fiquei encostada três meses, fiquei boa e voltei. Só que eu tinha diabetes e não sabia. Tive isso… (bate com a mão na perna mutilada do meio da coxa para baixo).

Brasília no começo só lembro de barro, acampamento, casa de madeira. Me lembro da agência do Banco do Brasil na Cidade Livre, muito barro, acampamento, casa de madeira. Depois, no Setor Bancário Sul, construíram o Sede 1, o Sede 2 e o Sede 3. O Sede 1 é o azul, agência; o Sede 2 e o Sede 3 é o preto, onde eu mais trabalhei.

Meu marido morreu, me liberou. Ele não era legal, preguiçoso.

Ele te batia?

— É doido! Levava na cara! Como é que bate numa pernambucana? Mas isso não está na minha história. O que está na minha história são meus filhos, meus netos e bisnetos. Minha vida em vez de piorar, fez foi melhorar.

Alice Pereira da Silva, 85 anos, de Barreiras (BA)

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rafaela Felicciano/Metrópoles

“Fui criada no peito da cabra. A cabra tinha dois cabritos e comigo, três. Meu pai é que contava. Minha mãe não tinha leite. A gente tomava mamadeira de caroço de farinha, tomei foi muito. Cozinha os caroços de farinha, aquele caldo da farinha, faz a mamadeira. Se tiver leite, põe, se não tiver, come puro mesmo. Tomava o caldo e o leite da cabra. Quando fiquei mais grandinha, engatinhando, parece que a cabra sabia do meu choro e vinha correndo com os cabritinhos. Eu pegava o peito dela e chupava.

Meu pai era índio. Ele era branco do cabelo preto e liso. Eram 15 irmãos. Só tem o que está em Anápolis, o Altair, e eu. Alguns (irmãos) saíram com o cabelo anelado por causa da minha mãe. Ela tinha o cabelo ruim pra cor dela. Todo o estoque do meu pai era de índio. Ele vivia no mato direto, vinha de vez em quando pra perto da cidade.

Fui chamada para Anápolis para trabalhar numa fábrica de filiatório, de fiar linha. Trouxe um filho no braço, o Sebastião. O pai já morreu. Casei assim no padre, amigação. A fábrica fechou há muito tempo. Depois peguei outra gravidez, uma menina. Ele (o marido) foi pra uma banda, eu, pra outra. Ele não tinha profissão, não sabia ler, não sabia o nome do pai nem da mãe. Eu não, meu pai era casado com minha mãe, Laurinda do Carmo Silva e Luis Pereira da Silva.

Minha irmã morava em Brasília, vim trabalhar. Deixei meu filho com outra irmã em Anápolis. Eu vi a construção todinha. Eu trabalhava no apartamento de um deputado, já morreu. A 105 estava construindo. Era só batendo martelo e serrando e os peão subiaba e pedia pra gente fazer o serviço (enfia o dedo indicador da mão direita numa circunferência feita com dois dedos da mão esquerda). Eu passava direto.

Recebia as marmitas da cantina. Já vi papo de galinha, moela inteirinha, sem abrir sem nada, no meio da comida. Era da cantina dos operários. Era comida pra peão, fazia de qualquer jeito.

O deputado bebia muito, me chamava de Liça. Morreu de cachaça. Quando ele passava mal, eu no quarto da empregada e ele pra lá. Os colegas levavam ele pra o hospital. Era desse jeito E eu sempre falando… ‘deputado, larga dessa cachaça. Você vai morrer com essa cachaça’. Eu tenho uma boca, se eu falar, é um castigo. Meu sobrinho me chama ‘boca de praga’.

Trabalhei de doméstica em muitos apartamentos (na 105 e na 106 Sul) uns 20 anos. Era um puteiro miserável… esses homens só andam com o avião cheio de mulher, pega no Rio, pega em São Paulo, diz que é namorada. Pobre que tem mania de já ir grudando e beijando. Eles não, conversam, vaõ beijar de noite. No meio povo é só conversa. Em todo lugar ele tinha mulher. Era puta porque cruzava com ele. Eu falo é ‘cruzar’, não era ‘transar’ (ri). Sabia que eles cruzavam por causa do monte de papel higiênico debaixo da cama, eu ia limpar e tava aquela coiseira.

Aí fui trabalhar com uma professora e o marido era, como chama (puxa pela memória), era embaixador. Tinha quatro meninos, eu cuidava da cozinha e dos meninos. Eles brincavam pra lá, o apartamento era grande, e eu ficava pra cozinha. Passei muito tempo trabalhando pra essa mulher. Uma vez eu vi ela na televisão. Aí fui trabalhar para a irmã da professora, que era professora também. Ela ganhou uma menina e eu fiquei cuidando do apartamento e da menina, sempre na 105. O quarto de empregada é só a cama e o banheiro. A gente botava as roupas penduradas nas malas.

Nunca tive sorte com nada, nem em Brasília.

Lar dos velhinhos

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rafaela Felicciano/Metrópoles

Atrás do shopping, ao lado da feira, na esquina de uma das mais movimentadas avenidas de Sobradinho. É nessa intersecção urbana que vivem 70 abrigados do Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes. Idosos, velhinhos, gente da terceira idade ou adultos que voltaram a ser crianças, designação que tende a desconsiderar a identidade de quem já não é mais economicamente produtivo. Em muitos casos, adultos que perderam a autonomia física ou mental.

“Temos de trazê-los para a realidade”, diz a diretora da instituição que existe há quase 40 anos, Inês Miranda. Esse esforço para que eles tenham história e memória, e continuem – na medida de suas possibilidades – a serem sujeitos da própria vida, levou o Lar a produzir todos os anos uma agenda na qual cada mês é dedicado a um morador do abrigo, com fotos e textos que recuperaram a identidade, a memória, os feitos e a individualidade de cada um.

Na agenda 2020, ano em que Brasília completa seis décadas, o tema foi a candanguice de cada um, a participação deles na construção da capital que é o maior sítio de arquitetura e urbanismo modernos do mundo. Histórias como a de Manuel Quirino que chegou ao Planalto Central aos 19 anos e foi morar num dos acampamentos da Vila Planalto. E que testemunhou a ação policial no golpe de 1964. Ou a de Antônio Lisboa, paraibano de Uirauna que tem intacta na memória a seca de 1958 no Nordeste. Menino, 6 anos, viu a fome derrotando famílias inteiras e “um lastro de gado morto”. O flagelo daquele ano trouxe para Brasília uma multidão de nordestinos famintos – e forçou Juscelino Kubitschek a autorizar a criação imediata da primeira cidade-satélite, Taguatinga.

O Lar Bezerra de Menezes vive da atuação voluntária e aceita doações de alimentos, medicamentos e material de higiene e limpeza, de roupas, eletrodomésticos, eletrônicos. O que não é usado pelos idosos e colocado à venda na lojinha que a instituição mantém no Shopping Sobradinho.

Diretora Executiva
Lilian Tahan
Editora Executiva
Priscilla Borges
Editora Chefe
Maria Eugênia
Coordenação
Olívia Meireles
Reportagem
Conceição Freitas
Revisão
Mariana Reino
Edição de Fotografia
Michael Melo
Fotografia
Rafaela Felicciano
Edição de Arte
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