Conceição Freitas

A epidemia de feminicídio no Brasil, nesta segunda década do século 21, tem uma espantosa correspondência histórica com o que acontecia no ambiente de amor e ódio, paixão e violência, assassinatos e suicídios, nos anos em que Brasília foi construída.

O amor era um vírus perigoso, com alto risco letal – morria-se e matava-se em nome dele. Essas convulsões amorosas eram diárias e escandalosamente noticiadas pelo Última Hora, o jornal de Samuel Wainer que estremeceu a imprensa brasileira. Um de seus colunistas mais lidos e famosos era Nelson Rodrigues, o genial dramaturgo que assinava a coluna A vida como ela é – e o amor trágico era um de seus assuntos preferidos.

Naqueles anos 1950, um outro escritor, Marques Rebêlo, protestava contra a dupla moral da polícia do Rio de Janeiro que decidira prender quem namorava dentro dos carros estacionados à beira da praia. “A alegação é que a prática de beijos, abraços e carinhos é antimoral, quando em público, o que cria uma ideia de moral muito estranha: se é escondido passa, se é às claras, não”.

Na coluna de 6 de abril de 1954, sob o título “É proibido amar”, o escritor percorre as cidades onde o amor é livre e protegido: “Feliz Londres, em que a polícia, a polícia mesmo, vigia os parques de árvores frondosas e grama como colchão de mola, para que os pares amorosos não sejam perturbados em seus enleios pelos falsos moralistas. Feliz Paris em que os beijos e abraços são públicos – ama-se no bonde, no metrô, no ônibus, no cinema (…). Feliz Estocolmo, onde a prática do carinho em público é motivo de orgulho nacional (…)”.

Do outro lado do mundo, num país até então quase desconhecido, o amor era manchete das páginas policiais. Por dias e dias, o Última Hora publicava uma trágica (quase sempre sangrenta) história de amor que acontecida no Rio de Janeiro, ainda capital do Brasil. Uma história chamava a outra, sucessivamente.

Ilustração
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No canteiro de obras da nova capital, o amor também movia a roda da vida. Só que de um jeito afirmativo, como fonte de inspiração, como afeto e companhia para os homens que comandavam a epopeia tropical. O amor sustentava, pública ou clandestinamente, a construção de uma inacreditável cidade destinada a ser a capital de um enorme e intrigante país.

O amor pelo marido fez Nelly deixar os dois filhos ainda bebês com a avó para viajar com o companheiro para o sertão goiano. O casal foi o primeiro a chegar ao canteiro de obras da nova cidade.

Acervo da Família Schimidt
Ataualpha Schimidt só aceitou ajudar na construção de Brasília porque a mulher, Nelly, pôde vir junto
Ataualpha Schimidt só aceitou ajudar na construção de Brasília porque a mulher, Nelly, pôde vir junto

Quando a Metropolitana, empresa construtora de estradas, convidou o engenheiro Ataualpha Schimidt da Silva Prego para vir abrir a pista de pouso do aeroporto (ninguém queria vir), ele impôs uma única condição: “Caso não aprovasse a mudança da família, nada feito, e teriam que procurar outro engenheiro”, escreveu o engenheiro em livro de memórias que está sendo editado.

Ataualpha e Nelly se conheciam desde que ela tinha 7 anos e ele, 14. Mais tarde, namoraram, casaram-se e viveram juntos durante 65 anos, até a morte dela, há três anos.

Aos 95 anos, Ataualpha mora com a filha, Lilian, no Rio. Perguntado, por telefone, sobre aqueles tempos, ele diz que na cabeça dele só existe um vazio. Não é verdade. A memória continua aguçadíssima. É a saudade e a dor que o calam. “Depois que a mamãe morreu, ele nunca mais falou nela”, explica Lilian.

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O amor, o amor. Quando as obras da nova capital começavam a brotar do Cerrado, Juscelino Kubitschek conheceu um amor que duraria pelo resto da vida. Era o que, à época, os jornais e os folhetins chamavam romanticamente de “amor proibido”.

Casado com dona Sarah desde 1931, Juscelino conheceu Maria Lúcia Pedroso numa festa, em 1958, ano em que Brasília já parecia ser mais do que um sonho faraônico. A linda mulher de 25 anos estava acompanhada do marido, o deputado Pedroso, líder do PSD, partido de Juscelino. O presidente da República tirou a dama para dançar e assim ficaram a noite inteira.

Acervo Pessoal Lúcia Pedroso
Maria Lúcia Pedroso teve um amor épico com Juscelino Kubitschek. O romance começou na construção de Brasília
Maria Lúcia Pedroso teve um amor épico com Juscelino Kubitschek. O romance começou na construção de Brasília

Durante a dança, o irremediável sedutor a convidou para um chá no Palácio do Catete. “Nunca mais se separaram. Nem o receio do escândalo, o ciúme, o câncer ou a impotência afastaram os amantes”, escreve Claudio Bojunga em JK, o Artista do Impossível, a mais completa biografia até agora escrita sobre o fundador de Brasília.

Foi um amor épico como a construção da nova capital. Dez anos depois, ao saber do romance, o marido de Lúcia “de revólver na mão, ameaçou, dramaticamente, matar os dois”. No misterioso diário de JK, que ele escreveu desde os anos 1970 até a morte, Lúcia é citada 338 vezes com os codinomes de “Espanhol”, “Constantino” e “Audiência”, escreve Bojunga.

Acervo de Claudio Bojunga
Sarah Kubitschek, Maria Lúcia Pedroso e Juscelino Kubitschek
Sarah Kubitschek, Maria Lúcia Pedroso e Juscelino Kubitschek

Em carta enviada de Lisboa, em 1966, Juscelino pede a amada em casamento e diz que já está providenciando o desquite (o divórcio ainda não havia sido aprovado no Brasil). “É sentimento definitivo, eterno, imutável. Não há remédio, não há solução. Para que sofrer mais?” Maria Lúcia não quis se separar do marido. Ao mesmo tempo, tinha muito ciúme: “Ou você dissolve seu comitê feminino, ou nunca mais vai me ver”, teria dito a ele, segundo conta João Pinheiro Neto em Juscelino, Uma História de Amor. JK era um encantador de mulheres, esse era o ciúme de Lucia, 27 anos mais nova que ele.

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Entre os amores que construíram Brasília havia um outro, vivido às claras: o do engenheiro Bernardo Sayão e Hilda Fontenelle Cabral, amazonense de classe média, servidora pública como o pai. Secretária no Ministério da Agricultura, a jovem Hilda cumpria suas obrigações na repartição quando um homem de grande envergadura, belo como um Gary Cooper, se aproximou e pediu informação. Tinha audiência marcada com o ministro. Depois de conversar rapidamente com a secretária, o visitante entrou no gabinete e deixou uma festa nos olhos de Hilda: “Que homem lindo!”.

Acervo Pessoal Família Sayão
Secretária no Ministério da Agricultura, a jovem Hilda Cabral se apaixonou à primeira vista pelo engenheiro Bernardo Sayão
Secretária no Ministério da Agricultura, a jovem Hilda Cabral se apaixonou à primeira vista pelo engenheiro Bernardo Sayão

Na saída, conversaram mais uma vez. E outras e outras, dado que Sayão se preparava para vir criar as colônias agrícolas com as quais Getúlio Vargas planejava ocupar o interior do país, na Marcha para o Oeste.

A repartição ficava em Niterói e Hilda morava em Botafogo. Todos os dias, pegava a barca para ir ao trabalho e, do nada, começou a encontrar o gostosão que tinha ido ao gabinete. De conversa em conversa, flutuando nas águas da Baía de Guanabara, engatilharam um namoro, o casamento e, logo depois, a vinda para Goiás. “Aonde ele ia, ela ia com ele”, conta Lia, uma das duas filhas (o casal teve também dois filhos).

Acervo Pessoal Família Sayão
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Igo Estrela/Metrópoles
Lia Sayão conheceu o marido, Mario Sergio Boaventura de Sá, no Mercado Diamantina, na Cidade Livre
Lia Sayão conheceu o marido, Mario Sergio Boaventura de Sá, no Mercado Diamantina, na Cidade Livre

De Goiânia para Anápolis, de Anápolis para Ceres, de Ceres para Brasília. E Hilda com ele. Embora fosse um homem estonteantemente belo, nunca se soube de um caso amoroso dele. “Na época, se comentava de uma moça que era apaixonada por ele, mas meu pai trabalhava tanto e andava tanto pra lá e pra cá que nem se quisesse tinha tempo…”, comenta Lia, risonha.

Brasília também trouxe o amor para Lia Sayão. Ela conheceu o marido no Mercado Diamantina, na Cidade Livre. Tinha 14 anos, e ele, Mário Sérgio, 16. Casados há 54 anos, moram em uma casa projetada por Oscar Niemeyer, como muitas outras do começo do Lago Sul.

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Oscar, o arquiteto, casou-se duas vezes. A primeira, muito jovem, com Annita, com quem teve uma filha, Anna Maria. A segunda, aos 99 anos, já viúvo, com sua secretária de longos anos, Vera, com quem havia muito tempo mantinha um romance extraconjugal. Vera cuidou do arquiteto até a morte, em 5 de dezembro de 2012. Entre Annita e Vera, o arquiteto teve muitos amores. Ele mesmo dá pistas, em A curva do tempo, suas memórias, das pequenas orgias que aconteciam no escritório da Avenida Atlântica, no Rio.

“Lembranças do nosso escritório… das farras que fazíamos, das viagens do Rio a São Paulo e Brasília… como gostaria de contá-las!

“É lógico que nos divertíamos; que as mulheres compareciam; que inventávamos todas as brincadeiras à juventude permitidas, mas que pelos preconceitos da vida poderiam ser criticadas, embora o nosso trabalho seguisse paralelo, cheio de esperanças e responsabilidade.”

Arquivo Pessoal Família Costa
Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Leleta Costa, Maria Elisa Costa, Annita Niemeyer e Ana Maria Niemeyer
Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Leleta Costa, Maria Elisa Costa, Annita Niemeyer e Ana Maria Niemeyer

Amores, amores. Lucio Costa, o inventor de Brasília, decidiu participar do concurso do Plano Piloto movido, especialmente, pelo desejo da mulher, Leleta, que havia morrido dois anos antes. Era ela quem o incentivava a seguir arquitetando arquiteturas. Ainda de luto, ele desenhou uma cidade de asas. E não veio à inauguração por que, ele diria mais tarde, não via graça em participar da festa sem a presença de Leleta. Essa história foi contada nesta série (que agora se encerra) sobre a história de Brasília aos olhos do amor, das relações de gênero, da violência contra a mulher, da prostituição e dos sentimentos que permeiam tudo o que é do humano, os bons e os maus.

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