Conceição Freitas

Muitos anos depois da morte trágica da mulher amada, Lucio Costa abriu o coração para o poeta Thiago de Melo, amazonense como a mãe do arquiteto. Estavam no apartamento da Avenida Delfim Moreira 1212, no Leblon, onde Brasília foi inventada. Thiago tinha ido visitar o amigo em companhia de um compadre. Eram os anos 1980, mais de três décadas depois do acidente que matou Leleta. Talvez tenha sido a primeira vez, ou a única, em que o contido Lucio voltou à tragédia que se fez destino, como toda tragédia.

“Estávamos conversando, tomando um trago (…), e eu olhando as coisas que o Lucio tinha: fotografias, quadros, e de repente me fixei numa fotografia de Leleta, e parei para observar a beleza daquela mulher, beleza serena. E com uma naturalidade de criança, eu disse: “Mas Lucio, como Leleta era bonita”. Essa frase fez com que ele, imediatamente, tivesse a recordação de toda a felicidade de sua vida com Leleta, e concluiu por nos relatar, com pormenores, a morte de sua mulher amada. Sem que inquiríssemos nada, ele começou a se lembrar dos detalhes do acidente em que Leleta morreu. E, de repente, sorriu. Tinha lágrimas correndo, mas sorriu. Fizemos um silêncio quase musical, diante da grandeza daquele ser humano”, recordou-se Thiago em depoimento a Geraldo Motta Filho, autor de O Risco, premiado documentário sobre um dos mais importantes arquitetos brasileiros de todos os tempos.

“Minha mãe era solar”, diz uma de suas duas filhas, Maria Elisa Costa, 88 anos. Era dia claro; Lucio, fim de tarde. “Viveram um grande amor”, continua a arquiteta de 88 anos, no mesmo endereço de onde a família saiu num dia chuvoso rumo à tragédia, pai, mãe e duas filhas. Fazia 25 anos que estavam casados, mas a paixão (se é que ela pode ser sinônimo de amor) não apareceu límpida como uma manhã ensolarada.

Arquivo pessoal
Leleta desenhada pelo pintor Henrique Bernardelli
Leleta desenhada pelo pintor Henrique Bernardelli

O jovem arquiteto de pouco mais de 20 anos se apaixonou ao mesmo tempo por duas primas, Leleta e Lieta. Sem saber o que fazer (à época o poliamor era uma indecência), Lucio aproveitou um prêmio da Escola de Belas Artes e embarcou para a Europa com 28 contos de réis, a moeda brasileira de então – dinheiro com que passou quase um ano “folgado” visitando países e perscrutando o coração.

“Em 1926, induzido por questões sentimentais, resolvi viajar.” Naquele tempo, só se ia à Europa de navio. Do Rio, subindo em direção ao norte para, de lá, atravessar o Atlântico. Quando atracou na Bahia, Lucio mandou a primeira carta para a família:

“Cheguei ontem. Fiz boa viagem. A princípio triste. A partida apressada, atrapalhada, atordoada, de última hora, deixou em mim qualquer coisa de vazio.

E de fato pensei tanta coisa! Sentia-me como que suspenso, no ar, incapaz de sentir direito, de pensar… Partida…

Dia de bruma, dia chuvoso. Tudo fora de foco, impreciso, — turvo. O cais que se afastava, aqueles lenços. O “Minas”, um scout, destroyers. Laje num círculo de espuma, o forte de Santa Cruz. Depois a barra e as praias que fugiam… E fugia a terra, fugiam os entes queridos — fugiam Lieta e Leleta – fugia tudo.

E no entanto era apenas eu que fugia.”

Arquivo pessoal
Durante a viagem à Europa, Lucio mandou uma carta à Leleta
Durante a viagem à Europa, Lucio mandou uma carta à Leleta

Uma fuga inspiradora. Nascido em Toulouse, na França, mas com nacionalidade brasileira, o jovem arquiteto apaixonado visitou Lisboa, Roma, Turim, Milão, Veneza, “essa cidade de romance”. A viagem aquietava o coração para que, mais tranqüilo, pudesse lhe revelar o que de fato sentia e o que de fato queria:

“E tudo surgia assim de repente, e eu olhava para tudo com espanto, e me sentia triste, e me sentia contente. Numa sensação ao mesmo tempo de prazer e desencanto. Era como se dentro de mim qualquer coisa desmoronasse ou se partisse para logo se transformar – ressurgir – numa metamorfose imprevista. Esse momento de transição, esse rápido instante em que a realidade substitui o sonho é de um prazer doloroso, de uma alegria triste.”

Não apenas a arquitetura e tudo o mais ao redor moviam Lucio. Havia nele um gosto ávido pelo feminino. Na Itália, percebe: “Mulheres bonitas encaram a gente sem temor. Todas pequenas e de pernas finas. A italiana alta e gorda é conto de fadas, não existe. Nada de olhares rápidos, tímidos ou falsamente pudicos. Olham sem receio, francamente – ‘carrément’, quase com ar de desafio”.

A ousadia só cai bem nas italianas: “O que estraga um pouco a Itália é a quantidade de inglesas e americanas que perambulam com ares desapontados de quem pensava encontrar uma aventura em cada canto – em cada esquina um punhal ou uma guitarra – e entretanto nada encontra”.

Deixava-se levar pelo encantamento. Assim foi quando conheceu Leleta, numa visita de casa em reforma. Guardou a imagem de uma moça ocupada em afazeres domésticos “com uma florzinha de manacá nos cabelos”. Assim foi também numa tarde do começo dos anos 1920, quando viu uma “bonita moça” numa esquina do Rio, esperando condução. “Quando dei por mim, estava num bonde da Tijuca, atrás do banco dela, saboreando na diagonal o seu perfil. Mas como tinha o que fazer, adiante saltei.”

Quatro anos depois, Lucio reencontra a bela mulher no restaurante do Bagé, o navio que o trazia de volta ao Brasil depois da viagem à Europa. “Sentado em frente, vencido o espanto, notei que, discretamente, chorava — tratava-se do ‘Jean’”. Ou seja, era o encontro de dois atormentados pelo amor.

Ficaram amigos de bordo. Chamava-se Mary Houston. Brasileira de descendência norte-americana, gostava do surrealismo, “mas, vez por outra, entremeava aquela sua obsessão da ultrapassagem do real com gratuitos passatempos”, escreveu Lucio em suas memórias. Numa das distrações a bordo, os dois brincavam de forca. O desafio era um nome próprio começado pela letra L, no que Mary enforcou o amigo. O nome era Le Corbusier. Àquela altura, Lucio Costa ainda não havia se deixado tomar pelos princípios modernos da arquitetura.

Quando o navio atracou no Recife, Mary convidou Lucio para visitarem um amigo dela, Gilberto Freyre, então chefe de gabinete do governador Estácio Coimbra, mas não o encontraram.

No fim da linha, o Rio, os dois amigos se despediram. No desembarque, Lucio observou quem esperava pela amiga de mar: Manuel Bandeira Villa-Lobos, entre outros artistas e intelectuais. Perderam-se de vista até que o arquiteto teve notícias da bela e encantadora Mary Houston: “Soube mais tarde que casara com o homem que a merecia – Mário Pedrosa”.

(O pernambucano Mário Pedrosa [1900-1981] foi um dos mais importantes pensadores brasileiro das artes, especialmente da arte moderna. Militante de esquerda, tem textos expressivos sobre Brasília.)

Nem Mary, nem Lieta, nem uma italiana. Em 1929, numa cerimônia singela, em casa, com a presença do escrivão e de dois padrinhos, Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa casou-se com Julieta Modesto Guimarães, a Leleta, uma das primas. “Nunca fui dado a formalidades e cerimônias”, escreveu mais tarde. Dias atrás, Maria Elisa Costa, ao ser indagada se havia fotos dos noivos na igreja, riu da pergunta: “Que igreja? Foi um casamento moderno, como eles eram.”

Vinícius Santa Rosa/Metrópoles
Maria Elisa se emociona ao lembrar a história dos pais: “Viveram um grande amor”
Maria Elisa se emociona ao lembrar a história dos pais: “Viveram um grande amor”

Recém-casados, foram morar em Corrêas, região serrana de Petrópolis, numa casa de campo dos pais de Leleta. Ficaram pouco tempo e desceram para perto da praia. Ocuparam o “porão habitável” da casa do sogro, o médico Francisco Modesto Guimarães, na Rua Gustavo Sampaio, 58, Leme, Rio de Janeiro, hoje demolida. Viveram lá até 1940. Nele, nasceram as duas filhas do casal, Maria Elisa e Helena. No mesmo ano em que a caçula nasceu, a família mudou-se para um Leblon ainda deserto.

Lucio Costa escolheu o primeiro prédio sobre pilotis do Rio de Janeiro, o de número 1212 da Avenida Delfim Moreira, o penúltimo antes do fim da praia do Leblon. Era quase uma quitinete vazada, no 5º e último andar, aberta para o mar: tinha apenas um quarto, uma sala, banheiro, cozinha, área de serviço e dois terraços, um para a praia e outro para a serra, tudo somava 70 m². E o elevador abria dentro da casa.

Foi nesse cafofo que Lucio Costa projetou Brasília e nele morou por quase 60 anos, até morrer, em 1998. O arquiteto moldou o pequeno apartamento ao seu gosto. Pôs o dedo até nos pilotis do edifício.

Arquivo pessoal
Planta da cobertura de Maria Elisa e Eduardo Sobral. Lucio Costa projetou o espaço de presente para a filha e o genro
Planta da cobertura de Maria Elisa e Eduardo Sobral. Lucio Costa projetou o espaço de presente para a filha e o genro

Quando Maria Elisa casou-se com Eduardo Sobral (tio do ex-governador do Distrito Federal Rodrigo Rollemberg), sugeriu ao pai que construísse um apartamento no terraço do edifício 1212. Assim foi feito. Lucio Costa desenhou uma cobertura moderna, simples e com pequenas e surpreendentes soluções. “Debruçado sobre a praia, com toldo verde acompanhando o caimento do forro da sala, e os pisos escalonados impostos pela estrutura, o apartamento de tal forma ‘captura’ o mar que a presença dele passou, de fato, a fazer parte da casa”, escreveu o arquiteto.

Havia um rinoceronte no meio do apartamento: a casa de máquinas do elevador. Lucio Costa encontrou uma solução corajosa, pintou de preto as paredes do cômodo e elas, quase milagrosamente, sumiram. Estão lá até hoje, quase imperceptíveis, embora escondam o maquinário de um elevador antigo, revestido em madeira, com porta sanfonada.

O apartamento do 5º andar, onde nasceu Brasília, ainda pertence à família de Lucio Costa, mas já não tem as características originais. Como consolo para historiadores, arquitetos e apaixonados em geral, a cobertura de Maria Elisa continua fiel a si mesma, com todas as marcas da presença arquitetônica e afetiva de Lucio Costa.

Arquivo pessoal
Nos croquis da cobertura no Leblon, Lucio Costa desenhou até a disposição dos móveis da sala
Nos croquis da cobertura no Leblon, Lucio Costa desenhou até a disposição dos móveis da sala

Ao mesmo tempo em que reformulava a própria morada (fazia até croquis da disposição dos móveis da sala) e projetava e construía a da filha, o arquiteto consolidava os fundamentos da arquitetura moderna brasileira, depois de ter se apartado do modismo eclético da primeira metade do século 20. Ficou amigo de Le Corbusier, de tal modo que quando ia a Paris, o arquiteto franco-suíço levava a “tribu Costa” para jantar. Amizade que teve admiração, afeto, desencontros e mal-entendidos e que deixou uma forte e estranha marca na vida de Lucio Costa.

Numa das idas do brasileiro a Paris, Le Corbusier mandou para Leleta um desenho feito por ele – um punhal com sangue, embaixo do qual estava escrito: La vie est sans pitié (a vida é impiedosa).

Depois da tragédia, o presente passou a ser tratado como premonição.

Faltando dois anos para completar 90 anos, plena de viva inquietude, Maria Elisa Costa não quer revisitar aquele 10 de março de 1954, quarta-feira chuvosa, na subida para Petrópolis. O Lancia, um conversível italiano, derrapou na estrada molhada, e bateu num poste. Lucio, ao volante. Leleta ao lado e as duas filhas, Maria Elisa, 19 anos, Helena, 15, atrás. Em O Risco, filmado 16 anos atrás, a arquiteta voltou ao desespero:

“A minha mãe era uma pessoa solar. Você sabe como é uma pessoa solar? É uma pessoa que irradia luz para tudo que tem em volta. Então você pode imaginar o que foi o acidente que a levou. Foi um acidente estúpido, num caminho feito milhares de vezes na Rio-Petrópolis. Eu lembro que começou a chover, e tinha uma reta e uma árvore. Aí o carro derrapou e foi em cima dessa árvore, e a minha mãe foi apunhalada pela mudança do carro [alavanca de mudança era o nome que se dava ao câmbio que, antes, ficava atrás do volante, paralelo a ele]. Quer dizer, foi uma fatalidade. E foi uma coisa horrível, uma dificuldade para arranjar alguém que socorresse. Depois de muita luta parou um carro com uma senhora, que nos levou até a Fábrica de Nacional de Motores. Aí chegamos lá, com aquele desespero de papai, e de repente veio um homem com uma cara que eu nunca mais vou me esquecer, uma cara magra e comprida, e disse que não adiantava mais, que ela já tinha falecido.”

O jornal Última Hora publicou a notícia na primeira página. (Samuel Wainer, dono do jornal, tinha um apartamento do Parque Guinle, obra de Lucio Costa). O Correio da Manhã, dois dias depois, deu pequena nota.

Última Hora/Divulgação
O Última Hora publicou a notícia da morte de Leleta na primeira página do jornal
O Última Hora publicou a notícia da morte de Leleta na primeira página do jornal

Naquele 1954, Juscelino ainda não havia sido eleito, Brasília era só um artigo da Constituição, mas Lucio Costa já era um dos mais importantes arquitetos e pensadores brasileiros. Tinha feito uma reforma revolucionária na Escola de Belas Artes (com rápida reação das forças conservadoras), havia liderado a equipe que construiu o primeiro edifício em grande escala da arquitetura moderna no mundo, o atual Palácio Gustavo Capanema, estava às voltas com o projeto da Casa do Brasil na Cidade Universitária de Paris (com Le Corbusier). Havia participado da comissão internacional encarregada de analisar os projetos para a sede da Unesco (organização da ONU para educação, ciência e cultura) em Paris. E tinha, trágica ironia, feito naqueles dias bem-vindas mudanças no trânsito do centro do Rio de Janeiro, àquela altura já caótico.

Com a morte de Leleta, Lucio petrificou. “Ele mudou muito. Mudou fisicamente, inclusive. Parecia que tinha perdido todo o sangue, sempre de cabeça baixa”, conta a museóloga Lygia Martins Costa, em O Risco (Lygia está com 105 anos), que trabalhou com ele no então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).

Só quem viveu uma tragédia sabe.

Arquivo pessoal
Leleta ficava indignada porque Lucio Costa não tinha o reconhecimento que merecia na construção de Brasília
Leleta ficava indignada porque Lucio Costa não tinha o reconhecimento que merecia

Uma secretária de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Sphan, dona Judite, havia perdido o filho em condições absurdamente trágicas (redundância para a tragédia, por si só absurda). O menino morreu atropelado quando vinha em direção a ela. Por conta disso, supõe-se, Judite e Lucio tiveram uma amizade forte. Quando ela voltou ao trabalho, depois do acontecido, o arquiteto senhorial levantou-se, deu-lhe um abraço profundo e chorou. “Chorou de quase soluçar, abraçado a ela, sofrendo junto aquela grande perda”, contou Lygia.

Em algum momento, muito depois da tragédia, Lucio Costa escreveu um bilhete sem data:

“Petrópolis era um mar de hortênsias.

O ar era puro e lavado, luminoso, azul.

Nas manhãs e nas noites era o nosso caminho, na Lancia aberta, para Correias.

Petrópolis era a Piabanha 109, a cidade onde Dr. Modesto clinicava e Leleta nasceu.

Agora está desfigurada, tudo mudou.

Certamente para os outros ainda sobrou muita coisa graças aos tombamentos e ao tenaz empenho de algumas pessoas.

Mas para mim Petrópolis ficou sendo a cidade do nosso destino – para onde íamos, quando Leleta morreu, esvaída em sangue.”

Não veio à inauguração de Brasília por duas razões: porque queria deixar o primeiro plano para Oscar Niemeyer e Israel Pinheiro, arquiteto e construtor da cidade, respectivamente, e porque Leleta gostaria muito de estar lá e ele queria dividir o impedimento com ela. Foi o que explicou em bilhete à revista Time, que havia criticado a ausência do criador.

Leleta ficava indignada porque o marido não tinha o reconhecimento que merecia. Lucio respondeu à mulher amada dando-lhe uma cidade. Que, quase 60 anos depois, é de 3 milhões de almas, muitas delas vivendo lindas histórias de amor, mesmo que trágicas.

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