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Carter Batista brinca: “Não torcer pelo time do pai é crime”

Não torcer para o time do seu próprio pai é gesto de uma manifesta e profunda ingratidão

atualizado

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Não torcer para o time do seu próprio pai é gesto de uma manifesta e profunda ingratidão. Só um pai poderia perdoar um desvio de caráter dessa magnitude. O meu perdoou.

É isso que os pais fazem. Os pais são máquinas biológicas programadas para perdoar os muitos defeitos de sua prole degenerada. Aliás, fui perdoado com rara complacência. Um perdão impregnado de mea culpa. Afinal o culpado foi ele mesmo que não posicionava o futebol na ordem correta na escala de prioridades da vida.

João e Gui, torcedores do Internacional

Ou seja, meu pai ignorava o poder transformador do futebol, a sua capacidade de florescer sozinho, independentemente de qualquer incitação, no coração de uma criança. Assim, quando me tornei torcedor de um rival (que ele nunca odiou), meu pai achou até graça.

As histórias de pais que tornam seus filhos torcedores do próprio time (atitude exemplar) são muitas e sempre me emocionam, mas tem também a história do meu compadre João dos Passos que se tornou torcedor do time do seu filho. O João foi escolhido pelo time do filho depois dos 30 anos, mas antes disso – pasmem! – nunca havia assistido a uma partida completa de futebol, nem na Copa do Mundo.

Sendo filho do João, qualquer um poderia apostar que o Gui seria um cara muito gente fina (é e mesmo), além de roqueiro, skatista, grunge, punk, cabeludo ou metaleiro. Mas boleiro nunca. Só que o futebol escolheu o Gui e o Gui contagiou a família inteira, principalmente o João que nunca desenvolveu anticorpos para lidar com a febre de bola. Sendo quem é, o João jamais poderia escapar desse resultado. Hoje ele assiste aos jogos ao lado do Gui, veste o manto e xinga o juiz numa torrente libertadora que tem a progressão fulminante da catástrofe.

É isso que, a certa altura, o futebol proporciona aos pais e filhos: uma possibilidade de estarem juntos, às vezes a única, uma fonte de assunto inesgotável e a chance de vibrarem na mesma corda, de uma comunicação sem palavras, embalada do sentimento de devoção ao esporte.

Lembro sempre da experiência que o Nick Hornby relata em um de seus livros, o Febre de Bola, que graças ao futebol, ele pôde ter uma relação com seu pai, pois esse interesse mútuo, como nenhum outro, reduzia as tensões entre eles, principalmente após a separação dos pais de Nick. A rotina de visitas do pai, depois da separação, foi preenchida com as idas ao estádio, os jogos pela TV e assunto futebol, uma fonte inesgotável, acrescentava uma oportunidade de sofrerem, chorarem, vibrarem e comemorarem juntos.

Imagino que a minha própria relação com meu pai teria sido diferente, quem sabe até mais rica, se houvesse uma força comum como o futebol entre nós. Desde que eu próprio me tornei pai essa é uma questão que me inquieta. Como quase todo pai, só quero ver o meu molequinho do mesmo lado da arquibancada que eu, em dia de clássico, vestindo as mesmas cores e entoando os mesmos cânticos. É essa a minha missão.

E ninguém vai me segurar. Nem a PM ♫

Inicialmente, adotei uma postura racional, menos combativa. Andava repetindo que seria ele quem de fato escolheria seu time (o que não deixa de ser verdade). Fui democrático demais, não forcei nenhuma barra, deixei que a coisa fluísse naturalmente. Ele só tinha 3 aninhos, era cedo ainda, pensava eu.

Até que chegou a Copa do Mundo da Rússia e eu fiquei um mês fora de casa. No primeiro final de semana fora, minha esposa ligou da festa de aniversário do meu sogro e disse que o pequeno estava com o avô e com o primo cantando o hino de determinado clube (não disse qual). Nunca levei uma punhalada, mas agora acho que sei como é. Corta. Rasga. Vai fundo. Revira tudo.

Lembro de ter ouvido um “o que você quer que eu faça?” e ter respondido um “tire ele daí agora”. Um pai só quer proteger sua prole. Se fosse para ele torcer para um time diferente do meu, que pelo menos fosse um time melhor.

Mas como não existe nenhum time melhor – e muito menos maior – do que o meu, isso estava literalmente fora de qualquer cogitação.

Há sempre um amigo inconveniente, um tio, ou um parente tentando induzir nossos filhos à apostasia. O dever inescapável do pai é cortar as asas dessas más influências, doe a quem doer. Não se aceita presentinho de outro time, não se aceita piadinha, frase pronta. Qualquer brincadeira se corta na hora e se reforça depois.

Naquele dia eu entendi que a culpa era minha. A identidade de um torcedor surge com a emoção e não com a razão. Agora é assim, vou levar e buscar na escola todo dia cantando o hino do clube. Todo dia veste e beija o manto sagrado. Mesmo quando ainda não dedicava 90 minutos para acompanhar os jogos, sempre comemoramos juntos todos os gols.

Não se enganem: não basta só incentivar, o pai tem que forçar a barra mesmo e detratar os rivais sempre que possível. Prometer prêmios e ameaçar com terríveis castigos. Guerra é guerra. Hoje em dia, um pouco antes de começar o isolamento social, quando eu o chamava dizendo que estava perto de começar um jogo ele já completava: “Espera aí, pai, que eu vou vestir o meu manto.”

Com os sons da arquibancada, com brincadeiras, doces e recompensas (coisa que os rivais não oferecem), vou ajudando meu pequeno a construir suas memórias no futebol. Quando chegar o momento dele escolher o seu time, já terá sido escolhido.

Amém.

 

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