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Até onde vai a liberdade religiosa e onde começa o crime de homofobia?

Após pregação polêmica de pastor dos EUA, que disse que “homossexuais têm reserva no inferno”, especialistas comentam sobre criminalização

atualizado

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David Eldridge, pastor dos Estados Unidos
1 de 1 David Eldridge, pastor dos Estados Unidos - Foto: Reprodução

A legislação brasileira define como crime os atos de homofobia e transfobia, desde que uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2019 incluiu a tipificação na Lei do Racismo. Porém, ainda há discussões que questionam quando as ações discriminatórias podem ser lidas como parte de uma liberdade religiosa e quando elas passam a se configurar como discurso de ódio.

Um dos fatos que vem gerando discussões neste sentido ocorreu no Distrito Federal. David Eldridge, um pastor dos Estados Unidos, pregou em evento para evangélicos, durante o Carnaval, e disse que homossexuais, transgêneros, bissexuais e drag queens “têm uma reserva no inferno”.

Veja:

 

A Polícia Civil do DF abriu inquérito para apurar se houve crime, após receber denúncias da Aliança Nacional LGBTI+, da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (ABRAFH) e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa, presidida pelo deputado distrital Fábio Felix (PSol).

Leonardo Santana, doutorando do programa em direitos humanos e cidadania da Universidade de Brasília (UnB), explica que o STF reconheceu o crime de homotransfobia na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26.

“Nessa lei, se encara como racismo não só a questão de cor da pele, mas quando envolve também gênero e diversidade sexual, impedindo que o discurso de ódio chegue à essa situação de desumanização, que gera violência”, pontua.

Na avaliação de Leonardo, a liberdade religiosa ou de expressão não permitem que alguém levante discursos de ódio. “Essa liberdade precisa ser feita nos marcos da democracia, e a nossa traz o princípio da dignidade da pessoa humana. Homotransfobia é hoje punida pela lei. A religião também modera o exercício a partir da lei do país. A Igreja Católica não faz ordenação de mulheres como padres e não há problema nisso, mas, ao mesmo tempo, ela não pode fazer discursos que colocam as mulheres como inferiores ao homem.”

Outro exemplo que ele dá é o casamento de pessoas do mesmo sexo, que não é permitido dentro de determinadas religiões. “A igreja pode fazer isso, mas não pode desmerecer a ponto de expor as pessoas à violência, ao ódio”, lembra. Sobre o sermão do pastor norte-americano, Leonardo avalia que David vem de uma cultura com mais ênfase ao liberalismo, mas que, no Brasil, precisa seguir a legislação que já é consolidada. “É importante que a lei se imponha nesse momento.”

Debate

A pregação feita no evento virou briga política no DF. Após o pedido de Fábio Felix para investigar uma possível conduta criminosa, outros deputados da Câmara Legislativa se manifestaram com diferentes pontos de vista. Um dos críticos à apuração criminal é o distrital pastor Daniel de Castro.

Citando que a igreja sofre intolerância religiosa em eventos como o Carnaval e paradas LGBTI+, mas tenta resolver com diálogo, fora da esfera da Justiça, ele avalia que a fala do estadunidense está dentro da liberdade da fé dos evangélicos.

“Acho que ele fala mais forte, há um certo exagero até, mas o americano tem a liberdade pulsando na veia, ele às vezes não sabe como é aqui. Ele é um pregador, tem a vida dedicada ao evangelho. Um pastor não vai a um culto pregar o ódio”, diz.

O deputado acredita que o discurso de David tem embasamento nos ensinamentos bíblicos. “Deus mostra quem vai ficar de fora [do Céu] se não aceitar Jesus. Não temos ódio dos gays. O mandamento diz: ‘Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei’. Ele não usou o nome de ninguém, falou do pecado, que Deus abomina, que Deus é contra.”

Outro distrital que seguiu o entendimento de Daniel de Castro foi Iolando (MDB), que também é evangélico. Em nota compartilhada nas redes sociais, ele criticou a investigação contra David, afirmando que Felix parecia “estar utilizando essa situação para promover uma agenda política”.

Já Lucci Laporta, militante trans e assistente social, acredita que o discurso que gerou polêmica atingiu a dignidade das pessoas citadas pelo pastor. “Se um religioso falar hoje que pessoas negras não têm alma, como o cristianismo defendeu há muito tempo, ele estará cometendo crime de racismo. Eles podem ter o arcabouço teológico, mas isso não permite que ataquem direitos de uma parte considerável da população”, pontua.

STF

Na íntegra da tese do STF que criminalizou a discriminação e violência contra a população LGBTQIA+, o Supremo destaca que “a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada”. No entendimento da Corte, os religiosos têm o “direito de pregar e de divulgar, livremente, o seu pensamento”.

Porém, a tese também traz que isso só é permitido quando essas manifestações não se configurem como discurso de ódio. O texto avalia como ódio aquelas “exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.

A Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin) investiga o caso. Caso fique provado o crime, a pena pode ser de 4 a 10 anos.

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