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Caio e Barba, duas origens, duas histórias e um mesmo destino

Como o Setor Comercial Sul, lugar de tanta má-fama, deu identidade a dois homens que buscavam um modo de se salvar do vazio da vida

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Caio e Barba, produtores e incentivadores culturais do Setor Comercial Sul, lugar de tanta má-fama, deu identidade a dois homens que buscavam um modo de se salvar do vazio da vida.
1 de 1 Caio e Barba, produtores e incentivadores culturais do Setor Comercial Sul, lugar de tanta má-fama, deu identidade a dois homens que buscavam um modo de se salvar do vazio da vida. - Foto: Andre Borges/ Esp. Metrópoles

O Setor Comercial Sul salvou, de modos e em instâncias diferentes, dois homens de origens e percursos distintos, os dois com a mesma precisão: a do encontro com a própria identidade.

Rogério Soares, o Barba, acha que tem 48 anos e que nasceu em São Paulo. Sustenta-se nas informações da certidão de nascimento. Não conheceu nem pai nem mãe nem parentes nem aderentes. Foi criado em orfanato.

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Caio largou a faculdade e flanava pelo Setor Comercial Sul como se o lugar tivesse algo a lhe dizer

 

Caio Dutra, 28 anos, brasiliense do Plano Piloto, foi criado na Asa Sul. Tem pai, mãe, parentes e aderentes. Depois de quatro semestres do curso de engenharia de produção na UnB, descobriu que aquele não era o caminho que queria para si.

Mais ou menos na mesma época, os dois ancoraram dúvidas e desesperos no Setor Comercial Sul.

Barba estava devastado pelo crack. Por conta de dívidas com traficante, havia fugido da Praça do Relógio, de Taguatinga, e se mudado para o SCS, um das maiores concentrações de morador de rua do DF.

Caio havia largado a faculdade e flanava pelo Setor Comercial Sul como se o lugar tivesse algo a lhe dizer. Desde os 14 anos, o adolescente brasiliense frequentava o SCS na companhia do pai, contador que passava o dia cuidando das contas da vasta clientela de comerciantes, prestadores de serviços em geral e profissionais liberais.

Se Barba não tinha um pai nem memórias afetivas de adolescência para lhe apontar um rumo, encontrou afeto no Buraco do Tatu, a casa de quem não tem casa. (Para quem mora na rua qualquer lugar pode ser uma morada, desde que o morador assim decida). Elvira Bastos, da ONG Futuro e Esperança, reconheceu naquele homem acossado um humano querendo ajuda. E Barba teve dela a bem-querença que nunca havia tido.

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Barba lutou desesperadamente para sair das drogas enquanto morava nas ruas do SCS

Caio largou a UnB para ser um empreendedor e ativista social no Setor Comercial Sul; um ativista cultural, um influencer do mundo real, que tem deixado pegadas concretas em tão maltratado e malvisto setor. “No começo, quando tentava marcar uma reunião no setor, ninguém queria vir. Diziam que era sujo, feio, perigoso, que não tinha onde estacionar. E é sim tudo isso. Mas eu entendia que quanto mais carga negativa se colocasse, mais difícil seria de mudar as coisas. E elas aos poucos têm mudado”.

Houve um dia em que Caio virou Barba. Era um show grande, e o ex-universitário havia passado o dia labutando na produção do evento. Saiu para espairecer e encontrou um amigo, morador de rua, chateado: quis entrar na área do espetáculo e foi barrado pelos seguranças. Caio o chamou para entrarem juntos e os dois foram não apenas interceptados como maltratados. Os seguranças viram naquele homem de bermuda, camiseta suja e chinelo mais um morador de rua. Foi preciso chamar a chefia para que tudo fosse esclarecido.

O doloroso exercício da alteridade reforçou em Caio o desejo de fincar ainda mais fundo as suas pegadas no Setor Comercial.

Enquanto isso, Barba lutava desesperadamente para sair das drogas. Ficou dois anos internado, com a ajuda de Elvira Batista – que chorou por ele, o visitava, o ajudou a colocar os dentes, o tratou como um humano.

Até que chegou o dia em que Barba virou Caio. Passou a ser visto, identificado e reconhecido pelo que é e faz – e essa identidade está entrelaçada ao Setor Comercial Sul, que o esperava, dele necessitava. Depois de ser um porta-voz da cultura da Revista Traços, Barba esticou os braços, as pernas, as ideias e o desejo de dar dignidade a quem só restou o crack.

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Mais ou menos na mesma época, os dois ancoraram dúvidas e desesperos no Setor Comercial Sul.

Rogério Soares tem uma lista de atividades que não cabem nesta crônica: é diretor da ONG que o acolheu, é apresentador e diretor da TV Comunitária Brasília (Barba tem incrível facilidade com as novas tecnologias). E desenvolve no Setor um projeto de redução de danos e de promoção da dignidade das pessoas em situação de rua.

O SCS foi o território que traçou horizonte para esses dois homens tão diferentes e tão geograficamente próximos. De lá para cá, a cidade reconhece em Caio e em Barba dois espécimes humanos forjados na diversidade, nas dificuldades e na riqueza urbana do Setor Comercial.

Caio: “O Brasil é um dos países mais miscigenados do mundo e Brasília é uma cidade construída por todos os estados do Brasil e o Setor Comercial Sul é o epicentro de Brasília. No Setor Comercial Sul, sou alguém, represento alguma coisa para a sociedade, tenho alguma importância”.

Barba: “O Setor Comercial Sul representa a minha vida. Tive aqui como minha casa, como morador de rua, porque aqui é um lugar que tinha tudo o que eu queria: álcool, droga, dinheiro, comida. Representa a minha vida porque foi daqui que eu saí. Pra mim significa ressurreição”.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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