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Autocensura é censura ao quadrado

Sinto pena dos jornalistas mais jovens que se autocensuram. Eles não percebem que a liberdade de expressão só se desgasta quando não é usada

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Escultura de rosto com fita preta cobrindo a boca - Metrópoles
1 de 1 Escultura de rosto com fita preta cobrindo a boca - Metrópoles - Foto: Getty Images

Você sabe que o seu país está em regime de exceção, e você colabora para que isso se mantenha, quando se policia para não noticiar fatos sobre determinados personagens públicos, ou emitir opiniões e fazer piadas sobre eles ou qualquer coisa que os contrarie, por medo de ser calado à força ou até preso, mesmo que as leis garantam o seu direito de liberdade de expressão. Autocensura é censura ao quadrado.

Como jornalista, vi-me censurado, intimidado e alvo de arbitrariedades algumas vezes, sempre na vigência do regime democrático, sob dois presidentes da República, Lula e Jair Bolsonaro, diferentes composições do Legislativo e diversas formações de instâncias superiores do Judiciário.

Não me vitimizo, nunca me vitimizei, e também já não me irrito quando tentam me colocar no mesmo saco de lixo de desclassificados petistas e bolsonaristas, para me deslegitimar. Reconheço os meus erros profissionais, muitos, e não valorizo tanto os meus acertos, tudo feito dentro do exercício legal da minha profissão. Ao fim e ao cabo, o jornalismo me proporcionou divertimento, recompensa e, para além de censura, intimidação e arbitrariedades, uma espécie de exílio e outras agruras. Recentemente, perdi a empresa que fundei e à qual dediquei sete anos. Paciência, um dia não terei mais de me haver com esse problema. A sabedoria a que pude almejar é um misto de couro duro com indiferença. Está ótimo.

Faço o trabalho pelo qual ainda sou pago, e que me consome muitas horas por dia, porque tenho de sobreviver de salário. Quando não for mais útil, farei outra coisa qualquer. Estou no Twitter porque, como jornalista, a presença na rede social mantém em circulação o que escrevo. Vez por outra, posto coisas pessoais, apenas para gerar mais engajamento (disseram que é bom para agradar aos seguidores). No geral, aquilo ali é uma chatice, um espetáculo de egocentrismo menos indecente apenas do que o Instagram.

A minha existência, na alma, está fora do jornalismo e de tudo o que se relaciona a ele, como as redes sociais. Está na literatura, nos meus filhos e nas minhas amizades. Voltei ao romance, as conversas com o meu filho mais novo são cada vez mais estimulantes e retomei a minha vida social em São Paulo. De vez em quando, sempre terei Paris. Esse é o jardim deste Candide.

Não tenho a menor importância na sua vida, leitor, e só falei de mim para deixar claro que um regime de exceção não me afeta mais tanto assim, do ponto de vista existencial. Se quiserem me calar, não será uma experiência nova. E, sinceramente, já fiz a minha parte. Esse misto de couro duro e indiferença é que me coloca em posição desinteressada para fazer um comentário sobre os jornalistas mais jovens que se autocensuram (em relação aos que apoiam a censura, jovens ou velhos, desprezo). Sinto pena.

Eles não percebem que a liberdade de expressão, de imprensa, só se desgasta quando não é usada. É triste porque esses colegas não se divertirão como me diverti, incomodando poderosos de todos os lados, nem terão o sentimento moralmente gratificante de tentar fazer algo para ajudar este país de mentalidade tacanha. Mas não sinto tanta tristeza por eles que me impeça de dormir. 

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