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Itamar Vieira Junior acusa crítica e Agualusa de racismo: “Nunca vi tanto ódio”

“Salvar Fogo”, de Itamar Vieira Junior, foi alvo de uma crítica negativa que, para ele, gerou e significou uma série de violências

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Hugo Barreto/Metrópoles
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1 de 1 itamar-vieira-jr - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Cerca de um mês após a publicação de uma crítica negativa a “Salvar o fogo”, na revista Quatro Cinco Um, Itamar Vieira Junior publicou um texto em sua coluna na “Folha de S.Paulo” em que falava sobre o racismo contra pretos e pardos e dizia ter visto racismo na resenha. De autoria da professora Lígia Diniz, a crítica via problemas no livro, entre eles um suposto maniqueísmo, ao sempre construir personagens negras como pessoas boas e brancas, como más. A coluna de Vieira Junior incandesceu o debate, e levou muitos, entre eles o angolano José Eduardo Agualusa, numa coluna em “O Globo”, a apontarem o que viam como uma dificuldade em lidar com críticas. Em entrevista à coluna, Vieira Junior disse ter visto racismo nos textos de Diniz e Agualusa, explicou por que decidiu escrever sobre o episódio e disse sentir racismo no meio literário por parte de editoras, prêmios e colegas.

“Eu acho que há um certo ressentimento, porque pessoas brancas sempre escreveram sobre suas histórias, sobre suas narrativas. Às vezes se orgulham do nome que carregam, da família, das suas origens, de onde vieram e escrevem sobre tudo isso e essa escrita nunca foi tida como identitária. Mas quando a gente faz isso, a gente é tachado de identitário, de maniqueísta, ou seja, há um ressentimento”, analisou.

O escritor contou ter decidido escrever sobre a crítica de Diniz após tuítes em que a professora o criticava por ter sido bloqueada por ele no Twitter. Nas postagens, a professora responde a um leitor que bloqueios em redes sociais podem ocorrer por “arrogância e preguiça mentale refere-se a Vieira Junior como “sujeito” .    

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Procurada pela coluna, Diniz afirmou que o escritor estaria deturpando o que ela escreveu — leia a resposta completa dela ao fim deste texto.

Vieira Junior disse que o tratamento de Diniz, se fosse um autor branco, seria outro.

“Ela me chamou de ‘preguiçoso mental, arrogante e vaidoso’. E aí eu saí da inércia, eu disse ‘não, eu não posso mais ficar em silêncio’, porque se fosse um autor branco, dificilmente ela ia para o Twitter proferir ofensas como ela proferiu, mesmo o autor estando em silêncio, eu não escrevi uma linha sobre aquilo”, disse.

Disse também considerar o texto de Agualusa uma violência, e afirmou que o angolano praticou whitesplaining contra ele, ou seja, quando uma pessoa branca tenta explica a uma pessoa negra o que é racismo:

“O texto dela [Diniz] gerou a violência do Agualusa, que, por mais que ele não considere violência, eu considero. Porque ali é o que a gente chama de whitesplaining, uma pessoa branca dizer para uma pessoa de cor o que é racismo. E não foi só o Agualusa, é uma coisa generalizada, tem saído em revistas… Eu nunca vi tanto ódio direcionado a um autor”.

Também procurado pela coluna, Agualusa enviou um comentário em que rebate a acusação. Leia ao fim deste texto a resposta do escritor.

Leia abaixo a mais trechos da entrevista de Itamar Vieira Junior à coluna. Assista aqui ao vídeo da primeira parte da conversa, publicado neste domingo, e aqui à segunda parte, em que ele fala sobre o debate gerado pela resenha de “Salvar o fogo”.

Você tem um fã-clube, nascido aqui em Brasília, aliás: o tortoaraders. Seus lançamentos reúnem centenas de leitores. Você é também um fenômeno pop. Isso parece incomodar parte da crítica, não?

Eu percebi ao longo do tempo… Eu me considero um neófito ainda, porque “Torto arado” foi publicado há quatro anos aqui no Brasil [o livro foi publicado antes em Portugal], e de lá para cá eu tenho conhecido as pessoas, eu tenho entendido um pouco desse meio literário, eu tenho percebido que é um meio que não é muito diferente da sociedade brasileira. Há um espaço de privilégios nesse lugar, há racismo nesse lugar. E eu nunca me senti tão vulnerável como agora, parece que meu corpo se tornou alvo de muita coisa que tem acontecido.

Você diz agora neste momento específico, no lançamento de “Salvar o fogo”?

Eu acho que talvez as pessoas tenham desacreditado que eu fosse escrever uma outra história, que o livro fosse conseguir ter uma pré-venda expressiva, mas por onde eu passo sempre tem muitos leitores. O Jorge Amado passou um pouco por isso, mas no caso do Jorge não existia a possibilidade de ser racismo, até porque ele era um homem branco. Mas ainda assim, como um escritor popular, eu acho que ele enfrentou muito isso. Porque há ainda uma ideia da crítica, de que aquilo que é popular, que é aquilo é parte da cultura de massa, não tem qualidade literária. Mas acho que isso não pertence só à crítica. Estou falando do meio como todo, estou falando das editoras, estou falando dos prêmios literários. Por exemplo, a Ana Maria Gonçalves. Ela escreveu o romance mais importante do Brasil no século XXI e foi um romance que passou em branco pelos prêmios literários. Nem indicado foi. E ganhou um prêmio depois, em Cuba, o Prêmio Casa de las Américas, que é para toda a América Latina. Ou seja, isso mostra muito de como esse meio editorial é. Hoje há publicações nesse sentido porque talvez as editoras tenham encontrado um filão. São essas pessoas que a gente falou agora há pouco, que têm deixado a universidade, que têm acessado outros espaços e são pessoas que fazem a economia circular também. O dinheiro circula e há uma demanda por representatividade, por leituras de sua história, por leituras sobre os temas que afetam suas vidas, suas histórias e trajetórias e as as editoras descobriram isso. Não é o meu caso, o meu editor acredita profundamente nessas histórias, nessas narrativas, mesmo não ocupando esse lugar, mas eu acho que há casos de editoras que publicam sem acreditar naquilo que estão publicando, só para ter essa diversidade no seu catálogo e porque vende.

Você percebe racismo no meio literário? De que maneira?

Eu acho que há, não é diferente do que há no nosso mundo. Numa empresa, quem ocupa determinados lugares numa empresa? Em um jornal, quantos repórteres, jornalistas negros temos? Eu penso que é a mesma coisa, acho que não é muito diferente. Eu acho que há um certo ressentimento, porque pessoas brancas sempre escreveram sobre suas histórias, sobre suas narrativas. Às vezes se orgulham do nome que carregam, da família, das suas origens, de onde vieram e escrevem sobre tudo isso e essa escrita nunca foi tida como identitária. E todos esses atributos que eu disse para você são atributos, no fundo, identitários, porque você está ali reverberando as suas convicções, o lugar de onde você veio, as suas origens… Mas quando a gente faz isso, a gente é tachado de identitário, de maniqueísta, ou seja, há um ressentimento. Há um movimento no sentido de deslegitimar as denúncias de racismo no meio literário. Mas eu vejo também que cada vez mais as editoras vão ter que estar preparadas para isso. Elas precisam, não só as editoras, mas os prêmios literários, as feiras literárias, precisam se diversificar para não serem lidas e taxadas como por estarem reproduzindo esse racismo que é tão nocivo à nossa sociedade. Então você, Guilherme, se você falar olhando nos olhos do seu interlocutor em um debate, vão dizer “olha como o Guilherme é assertivo”, mas se é o Itamar, ou o Jefferson [Tenório] fazendo isso, vão dizer “olha como ele é arrogante”. E existe um racismo sutil, além de todo o declarado, que é muito mais brutal. Permeia nossa vida e não pode ser desconsiderado. A gente precisa realmente desconstruir isso. E as pessoas não têm culpa nisso, não vem de quem está praticando. São as estruturas que são racistas. Todos nós, inclusive pessoas negras, são passíveis de reproduzir coisas racistas também. Então a gente precisa entender antes as estruturas para que a gente possa desconstruir tudo isso. A gente vive a sobrevida da colonização, da escravidão. É sobrevida porque naquele momento foi criado um ranking de vida e valor: as vidas que valem mais e as vidas que valem menos. Isso está nas estatísticas, as pessoas que ocupam os presídios, aquelas que têm os piores índices de educação. Ou seja, esse ranking de vida e valor nunca foi desconstruído e a gente precisa desconstruir. Então é importante falar sobre isso hoje para que as gerações futuras possam viver num país mais respeitoso, mais equânime, que trate as pessoas de uma maneira respeitosa e equânime também.

Recentemente, você considerou racista uma crítica que a professora Lígia Diniz publicou na revista Quatro Cinco Um, em que, entre outras avaliações negativas, ela disse que “Salvar o fogo” era maniqueísta, supostamente por colocar personagens negros como bons e personagens brancos como maus. Depois, o escritor José Eduardo Agualusa sugeriu que você não havia lidado bem com uma crítica. Passado mais tempo da publicação desta resenha, você ainda a considera preconceituosa?

Eu acho que a leitura não é exatamente essa. Neste texto da Folha eu falo das estruturas que me fizeram alvo de violência mais uma vez. O editor que escolheu ela [Paulo Werneck], uma mulher talvez sem experiência, sem vivência, para ler uma história sobre raça, de colonialidade, sobre colorismo… Porque as personagens serem consideradas maniqueístas talvez seja uma simplificação. Primeiro, porque é uma comunidade afro-indígena, e Luzia é vítima, não é vítima da Igreja, ela é vítima da comunidade. São pessoas negras direcionando contra seu corpo uma violência. Então pessoas negras não podem ser só boas, porque a história não é bem essa. Ou você leu ou você não leu. Eu tinha lido essa resenha e passei quase 30 dias em silêncio. Só quem sabia do que eu pensava sobre a resenha era meu editor e uma pessoa da editora com quem eu conversava bastante. Por mais que eu visse até alguns elementos de racismo e classismo naquele texto, eu não queria falar sobre aquilo, mas aí, depois de 30 dias, ela [Lígia Diniz] foi para o Twitter, e eu nem uso Twitter, acusar-me de que eu a tinha bloqueado em rede social. E aí usou palavras que eram racistas porque me chamou de “sujeito”, ou seja, quis me inferiorizar em relação a ela e em relação aos outros. Ela me chamou de “preguiçoso mental, arrogante e vaidoso”. E aí eu saí da inércia, eu disse “não, eu não posso mais ficar em silêncio”, porque se fosse um autor branco, dificilmente ela ia para o Twitter proferir ofensas como ela proferiu, mesmo o autor estando em silêncio, eu não escrevi uma linha sobre aquilo. Claro que era impossível falar sobre esses xingamentos sem chegar à resenha que foi escrita, mas eu nem falo da resenha nesse texto da Folha, eu estou falando das estruturas que fizeram meu corpo ser alvo de violência mais uma vez. E aí foi importante falar sobre isso. Mas isso ganhou uma dimensão, uma distorção… É muito triste ter que parar um lançamento, que qualquer autor vai ter seus lançamentos e vai se dedicar exclusivamente àquilo, vai ter críticas boas e ruins, mas vai conseguir fazer o seu trabalho, e eu vou ter que parar o meu trabalho para responder uma violência generalizada. Porque o texto dela gerou a violência do Agualusa, que, por mais que ele não considere violência, eu considero. Porque ali é o que a gente chama de whitesplaining, uma pessoa branca dizer para uma pessoa de cor o que é racismo. E isso não se faz. E não foi só o Agualusa, é uma coisa generalizada, tem saído em revistas… Eu nunca vi tanto ódio direcionado a um autor, nesse tempo todo que eu conheço literatura brasileira, mesmo como leitor, eu nunca vi um ódio tão generalizado do da mídia, daqueles que falam sobre literatura contra um autor, como eu estou vendo agora. Mas eu também tenho consciência, embora eu não esperasse dessa maneira, que isso pode acontecer com qualquer autor que ocupa essa posição que estou ocupando e, principalmente, se ele vem de um lugar que não faz parte desses lugares historicamente relacionados ao espaço literário, se ele não da academia, se ele vem do Nordeste brasileiro, se ele traz a sua experiência racial para suas histórias. Ou seja, eu sei que ele está vulnerável a enfrentar tudo isso. Mas eu não posso me considerar um desafortunado

também, porque, se tem isso por um lado, a cada vez que eu encontro os leitores, um outro mundo se revela para mim. E é muito importante porque eu não estou apenas falando para os meus iguais. Esses livros encontraram leitores dos diversos extratos sociais, das diversas origens que esse país tem, e isso mostra que nem todas as pessoas brancas são racistas. A gente está falando das estruturas racistas. Mas tem pessoas dispostas a conhecer ainda mais essas estruturas para não reproduzir esse racismo que muitas vezes é sutil, que a gente nem percebe que está em tantas esferas e dimensões da nossa vida.

Como será o terceiro livro da trilogia? Para quando podemos esperá-lo?

Eu já tenho muita coisa sistematizada, pronta. Não sei se o que eu tenho escrito vai ser modificado porque, para mim, essa experiência da escrita é uma experiência que vai se revelando ao longo do processo. Eu escrevo, reescrevo, escrevo, reescrevo… Então eu nunca sei como vai terminar de fato. Não sei se será o próximo livro que eu vou publicar, isso ainda está em aberto, mas eu quero, se eu tiver tempo, saúde e vida, fechar esse ciclo que eu iniciei com “Torto arado”.

Já tem título a história? 

Não tem título e, mesmo se tivesse, talvez eu não contasse.

Já tem ideia?

Essa é uma história que começa na Chapada Diamantina e ela segue em direção ao litoral. Bom, se a gente seguir o caminho do rio, o rio deságua na Baía de Todos os Santos, deságua na capital [Salvador], vai de encontro ao oceano.

Você disse numa entrevista que seu próximo livro será mais urbano, inspirado na tragédia de Medeia, de Eurípedes, e tratará da relação entre mães e filhos. Pode contar algo mais?

Esse projeto antigo que eu tenho já está bem avançado porque eu tenho muita coisa escrita sobre ele, embora meu processo de escrita seja sempre um processo de reescrita, então eu costumo avaliar tudo aquilo que eu escrevo em conjunto e, só quando eu concluo, é que eu sei se aquela voz funcionou, se não funcionou, se eu preciso mudar o foco narrativo da terceira para a primeira pessoa, se eu preciso introduzir alguma coisa mais… Mas está bem avançado. São três histórias, aparentemente distintas, e que tratam da relação de mãe e filho, mas a partir desse lugar que me pertence, que é analisando toda essa dinâmica social e racial e como elas impactam e influenciam a nossa vida. É uma história mais urbana, não tem uma relação com o campo, mas também é um romance. 

O que dizem os citados

Ligia Gonçalves Diniz, professora e crítica literária

“Demonstrei o meu respeito ao escritor Itamar Vieira Júnior ao ler atentamente seus romances e escrever uma resenha cuidadosa acerca de sua mais recente obra, Salvar o fogo, na revista Quatro Cinco Um. Desde sua coluna na Folha de S.Paulo, o autor vem reiteradamente desfigurando  tudo o que escrevi, tanto na resenha quanto no Twitter, para me acusar impropriamente de um crime abominável. Agora, ele distorce seu próprio texto publicado na Folha, no qual se referiu à minha resenha como uma “cusparada”. A nova declaração demonstra, mais uma vez, para minha perplexidade, a dificuldade do autor em lidar com críticas negativas ao seu trabalho, sobretudo quando partem de mulheres”, acusou”.

José Eduardo Agualus, escritor

“O fato de você ter de utilizar uma palavra inglesa, porque não consegue sequer uma boa tradução na nossa língua, já nos diz muito sobre os perigos do imperialismo cultural — isto é, de tentar adaptar conceitos de uma realidade para outra, completamente diversa. Por exemplo, o que é isso de ser branco? Sou angolano. Em Angola, pura e simplesmente, não existem brancos étnicos, como na África do Sul ou no Quénia. Os angolanos de ascendência européia fazem parte de um grupo muito mais vasto, o grupo dos angolanos que falam português como língua materna, o “grupo crioulo”, e que é constituído sobretudo por pessoas de origem bantu. Em Angola, ou na Ilha de Moçambique, onde resido, vivo mergulhado num mundo de pessoas não brancas. Ninguém à minha volta é “branco”, nem família, nem amigos, ninguém. Nasci quando Angola não era ainda independente. Sei o que era viver sob domínio colonial, em situação de privilégio. O combate contra o colonialismo, em Angola ou Moçambique, foi travado por pessoas de todas as classes sociais e de todas as origens étnicas. Foi também um combate contra o racismo. O combate ao racismo diz respeito a toda a gente. Toda a gente tem a obrigação de combater o racismo”.

Paulo Werneck, diretor da “Quatro cinco um”

“Na ocasião a revista publicou uma capa com três materiais sobre o livro: a resenha de Lígia Diniz, uma linda reportagem de sete páginas, da Adriana Ferreira Silva e do Uendel Galter, que foram até o Recôncavo com Itamar, e um episódio do 451 MHz, o podcast da revista, em que converso com  Itamar e Adriana. Convido os leitores do Metrópoles a ler e ouvir esses materiais e julgar o editor pelo conjunto do que foi publicado”.

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