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Beatriz Segall não gostava de ser lembrada apenas como Odete Roitman

A atriz, uma militante do teatro, tinha muito mais a oferecer

atualizado

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Globo/Zé Paulo Cardeal
Beatriz Segall
1 de 1 Beatriz Segall - Foto: Globo/Zé Paulo Cardeal

Estive com a atriz Beatriz Segall por algumas vezes. Muitas na condição privilegiada de espectador, outras tantas como jornalista. Em todas as experiências, havia um sentido comum: a convicção sobre ser artista. Uma das maiores damas do teatro, do cinema e da televisão brasileira tinha a dimensão concreta da felicidade e da dor de se viver de arte num país que ainda dá a devida importância à cultura local.

“Como todo artista que faz teatro por ofício, perdi dinheiro em investimentos teatrais, mas sempre saí fortalecida dessas experiências. Nunca pensei em desistir. O teatro é o meu templo”, dizia.

Com vindas constantes a Brasília, Beatriz, certa feita, estava nos corredores da Câmara dos Deputados para defender um projeto que criava uma Secretaria de Teatro Nacional, com poderes e autonomia. A encontrei ali, por volta de 2008. Veio participar da audiência pública e tentar convencer os parlamentares.

Vim aqui defender e falar sobre teatro para muitos que nunca pisaram em uma sala de espetáculos. Isso reflete a nossa cultura. Deputados não têm a mais vaga ideia de quem foram Ibsen, Shakespeare e Nelson Rodrigues

Beatriz Segall, em 2008

Beatriz tinha impaciência com a falta de cultura alheia. Não de uma forma esnobe como a personagem de novela que ela não gostava de dizer o nome.

“Sabemos como os políticos tratam a educação e a cultura. Eles só querem enriquecer e esquecem de alimentar a alma do povo. Às vezes, precisamos mesmo falar para muros e provocar algumas rachaduras. O importante é ter essa oportunidade, porque não poder expressar uma opinião é uma dor tamanha”, dizia a artista.

Acompanhei essa audiência pública e vi o alvoroço das pessoas quando Beatriz abriu a voz ao microfone. Havia burburinhos na sala entre as pessoas. Os murmúrios eram geralmente: “Olha lá, a Odete Roitman”. Essa personificação matava as multifaces da atriz e, por isso, ela rejeitava cultuar a personagem de Vale Tudo, que lhe rendeu e renderá eternas glórias.

Havia muitas mulheres (reais e fictícias) dentro de Beatriz Segall e ela se negava a atender por um único nome. “Entendo a força de Odete Roitman e do seu papel avassalador numa novela de audiência como foi Vale Tudo. Mas eu sou muito mais que uma vilã preconceituosa e sem caráter”, explicava.

Beatriz não morria de amores por Brasília. Ela pertence a uma geração de artistas que associou fortemente a capital aos horrores da ditadura militar, cujo comando estava cravado, como uma espada, no coração da cidade sonhada por JK. Fez muitas temporadas aqui. Reclamava bastante da acústica da Sala Villa-Lobos.

Aquilo é um atentado contra a voz. Teatros não podem ser feitos só por engenheiros e arquitetos. O artista precisa estar por perto. É a alma dele que será abrigada após a inauguração. Dulcina enfrentou Niemeyer para erguer seu teatro em Brasília com uma qualidade que beneficiasse o artista e a plateia. Não são locais para turista tirarem fotos

Beatriz Segall

Uma das experiências mais felizes que teve na cidade foi Pequenas Raposas, no CCBB. A peça da dramaturga Lillian Hellman era um sonho acalentado por anos. Mas exigia um orçamento à altura da escalação de um bom elenco. Em cena, estava acompanhada dos grandiosos Joanna Fomm, Léa Garcia, Rogério Fróes e Ednei Giovenezzi.

Sempre me encantei com esse texto porque era como um protesto contra o capitalismo predatório, um não à ganância. Encená-lo em Brasília, capital do poder e do dinheiro desviado, é de uma força, é de uma liberdade sem tamanho. Beatriz convivia, nas coxias, com a fama de rígida demais. Produtora de algumas das suas obras, sempre escolhia a dedo o texto e os artistas envolvidos.

Como espectador aprendi muito com Beatriz Segall em cena. Uma das peças mais sensíveis que assisti, em São Paulo, foi Quarta-feira, lá em Casa, Sem Falta, ao lado da grande dama Miriam Pires. As duas me conduziam, no corpo-voz, às emoções de uma dramaturgia que fala de humanismos. Ao final do espetáculo, fui agradecê-las. As duas estavam impactadas pela obra entregue.

Vi aqueles olhos umedecidos de lágrimas e levo essa imagem de Beatriz Segall para vida. Tempos depois, liguei para a atriz para propor uma homenagem dentro do projeto Mitos do Teatro Brasileiro, no CCBB Brasília.

Fico muito lisonjeada, agradecida de coração. Mas acho que esse projeto tem uma importância fundamental para os que se foram e estão injustamente esquecidos. Fale da Dina Sfat, da Lélia Abramo, da Lilian Lemmertz. A falta de memória desse país é um dos mecanismos mais perversos para nos matarmos pela segunda vez. Por favor, homenageiem os que já se foram

Beatriz Segall

Beatriz Segall se foi e essa coluna, um fragmento de memória na web, servirá para fortalecer a lembrança de uma atriz inesquecível.

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