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A transexualidade e os direitos à dignidade e identidade sexuais

Deixando de lado discussões técnicas acerca do conceito e da definição de transexualidade, o foco hoje será nos aspectos jurídicos e aos direitos inerentes aos transgêneros.

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Gavel and a law book – Rainbow flag
1 de 1 Gavel and a law book – Rainbow flag - Foto: istock

Há algumas semanas os tabloides internacionais repercutiram a notícia de que Angelina Jolie e Brad Pitt teriam consultado um especialista para entender melhor sobre transexualidade e questões relacionadas a gênero. Isso porque Shiloh, filha de nove anos dos atores, além de gostar de se vestir com roupas feitas para meninos, passou a pedir para que a família a chame de John.

A imprensa, a partir de então, passou a afirmar que Shiloh é transexual. Não são poucos os casos reportados em todo mundo que relatam histórias de crianças que lutaram, desde cedo, para que houvesse um reconhecimento der suas identidades sexuais. O tema é extremamente polêmico e muito menos debatido do que deveria, muito em razão dos limites impostos por nossa sociedade patriarcal. Deveríamos discutir mais sobre a transexualidade como um todo, em todas as suas matizes e de forma verticalizada.

As questões relacionadas à identidade de gênero mudaram significativamente com o passar do tempo e a natural evolução social. Antes, o que era regra de gênero masculino e feminino não se mostra adequado à realidade dos dias de hoje. O tema em tela é sensível e de difícil discussão considerando-se uma sociedade com valores patriarcais. Não obstante, esta é uma realidade e como tal deve ser enfrentado a fim de garantir os direitos daqueles que não mais se identificam como pertencentes ao sexo masculino ou feminino como definidos atualmente. Deixando de lado discussões técnicas acerca do conceito e da definição de transexualidade, o foco hoje será nos aspectos jurídicos e aos direitos inerentes aos transgêneros.

O primeiro importante aspecto a ser trato diz respeito à alteração do nome e do sexo nos registros públicos, seja RG, seja carteira de motorista. No Brasil, para conseguir mudar o nome e o sexo no RG é preciso apresentar um laudo de um psicólogo e outro de um psiquiatra que atestem que a pessoa ‘sofre de transexualismo’, termo absurdo e cheio de preconceito classificado no Catálogo Internacional de Doenças. Além disso, é preciso de cartas de amigos confirmando que eles conhecem a pessoa com seu nome social e fotos do requerente, comprovando sua aparência física.

Sem uma lei que regulamente os procedimentos para a alteração dos documentos para pessoas transexuais, essa parcela da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) é obrigada a procurar na Justiça o reconhecimento de sua identidade em processos que podem ser longos, burocráticos e desgastantes emocionalmente. São inúmeros os obstáculos enfrentados no processo de requalificação civil.

O maior deles está na essência do procedimento. É um tanto absurdo que não seja suficiente que uma simples declaração do transgênero requerente seja capaz de servir como única exigência para que a alteração ocorra. É necessário que um profissional de saúde diga quem o transgênero é, sendo que declaração do requerente, no fim das contas, é o que menos conta.

A pessoa trans precisa que algum profissional de saúde, mais “qualificado” que ele próprio, ateste, confirme e comprove que ela pode ser reconhecida por aquele nome. A alta burocratização do processo de requalificação civil, bem como os inúmeros constrangimento porque passam os transexuais nessa caminhada são relevantes fatores de marginalização da população transexual, já que representam verdadeiros obstáculos para o reconhecimento da identidade sexual dos requerentes. Ou seja, é preciso uma legislação facilitadora desse duro processo, que muitas vezes humilha e marginaliza o transgênero.

É possível resumir como mais importantes os seguintes pontos no processo de requalificação civil:

  • É necessário ser representado por advogado ou defensor público. Isso porque se trata de processo em que a questão da alterarção de registros civis é judicializada. Na hipótese de o requerente não possuir recursos para custear o auxílio profissional, deve-se recorrer à defensoria pública.
  • É preciso que profissionais de saúde elaborem laudos psiquiátricos ou psicológicos. Esse requisito é extremamente criticado (e com razão), especialmente porque reduz, significativamente, a importância da autodeclaração. Assim, aquelas pessoas que têm um acompanhamento psicológico e psiquiátrico ou que já fazem parte do tratamento de redesignação do Sistema Único de Saúde (terapia hormonal e acompanhamento psicológico para cirurgia), já tem um grande conjunto de documentos considerados fundamentais para a conclusão da redesignação civil.
  • Não é preciso cirurgia para que redesignação civil aconteça. Ou seja, não é preciso fazer qualquer tipo de cirurgia para pedir a correção dos documentos, diferentemente do que as pessoas normalmente pensam. Decisões do Supremo Tribunal Federal são no sentido de que a análise deve ser feita pela identidade de gênero.
  • É preciso que sejam juntadas provas do uso do nome social. Ou seja, é preciso demonstrar ao juiz que o nome social do requerente representa sua verdadeira identidade. Exemplos: recibos de pagamento utilizando o nome social. Táxi, padaria, farmácia, açougue. Carteirinha do plano de saúde ou até mesmo do SUS podem ser feitos utilizando o nome social. Todos esses elementos dão prova de que o nome social é que define a identidade do transgênero. O uso do nome social em redes sociais também pode valer como prova.
  • Desde o dia 12 de janeiro de 2015, uma resolução sem força de lei do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais recomenda que instituições de ensino usem o nome social em seus documentos, tais como lista de frequência, boletins e matrículas. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também já permite o uso do nome social. Instituições de ensino superior também devem garantir o direito ao uso do nome social.

No que concerne à cirurgia de transgenitalização, é preciso registrar que ela tem por objetivo a adequação do sexo morfológico da pessoa em relação ao seu sexo psíquico. No Brasil, o Ministério da Saúde oferece atenção às pessoas nesse processo por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) desde a publicação da Portaria Nº 457, de agosto de 2008.

Segundo dados do Portal Brasil, até 2014, haviam sido realizados 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos em quatro serviços habilitados no processo transexualizador no SUS. Desde novembro de 2013, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria n° 2.803, ampliou o processo transexualizador no SUS, aumentando o número de procedimentos ambulatoriais e hospitalares e incluindo procedimentos para redesignação sexual de mulher para homem.

Antes das cirurgias, é realizada uma avaliação e acompanhamento ambulatorial com equipe multiprofissional, com assistência integral no processo transexualizador. Para ambos os gêneros, a portaria do Ministério da Saúde estabelece que a idade mínima para procedimentos ambulatoriais seja de 18 anos. Esses procedimentos incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia. Para procedimentos cirúrgicos, a idade mínima é de 21 anos.

O mais importante, dentro de todo esse contexto exposto, é que qualquer cidadão que procure tanto o Poder Judiciário para redefinição civil, quanto o sistema de saúde público e que apresente queixa de incompatibilidade entre o sexo anatômico e o sentimento de pertencimento ao sexo oposto ao do nascimento, deve ter sua dignidade preservada, tendo o direito a um atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação.

Por tal razão, devem ser louvadas todas as conquistas já adquiridas pelos transexuais (ainda que haja um longo e duro caminho a ser alcançado) devendo ser cada vez mais difundida uma ideia de sociedade tolerante e isenta de preconceitos.

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