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E se Jesus for mesmo a transexual a seu lado?

Assisti à peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” onde uma transexual revive os passos de Jesus. Achei uma adaptação bastante cristã

atualizado

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1 de 1 imagem-facebook-divulga - Foto: Divulgação

Quando assisti à peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, no festival de teatro Cena Contemporânea deste ano, pensei que poucas releituras da Bíblia faziam mais sentido que aquela. No enredo, uma transexual revive os passos de Jesus no evangelho.Ela, aquela que recebeu cuspidas e chibatadas em praça pública, acabou crucificada e espera, com coração ardoroso, a própria ressurreição gloriosa. A própria chance de existir socialmente. Achei, inclusive, que se tratava de uma adaptação bastante cristã pros tempos atuais. Cristã, sim.

Aparentemente, a opinião é um absurdo aos ouvidos do juiz que proibiu a apresentação do espetáculo no Sesc Jundiaí na semana passada. Segundo a equipe do espetáculo, o magistrado atendia aos pedidos de “congregações religiosas, políticos e TFP (Tradição, Família e Propriedade)” que, a meu ver, deve fazer algum tempo que não leem o evangelho — ou precisam de algumas liçõezinhas de interpretação de texto.

Atrevo-me a dar a esses senhores e senhoras uma lembrancinha do Evangelho segundo Mateus, que atribui a Jesus Cristo a seguinte parábola: “Recebei como herança o Reino (…), pois tive fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber; fui estrangeiro, e vós me acolhestes. Quando necessitei de roupas, vós me vestistes; estive enfermo, e vós me cuidastes; estive preso, e fostes visitar-me’. Então, os justos desejarão saber: ‘Mas, Senhor! Quando foi que te encontramos com fome e te demos de comer? (…) Então o Rei, esclarecendo-lhes, responderá: ‘Com toda a certeza, vos asseguro que, sempre que o fizestes para alguns destes meus irmãos, mesmo que ao menor deles, a mim o fizestes’.”

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Jesus, ele mesmo, se compara aos mais oprimidos de cada sociedade. Jesus, ele mesmo, diz que ao acolhê-los, é a Ele que acolherá. E quem está mais às margens, mais necessitado de acolhimento, aceitação e inclusão social do que as transexuais, meu Deus? E quem, neste mundo preconceituoso, nesse Brasil que mata uma transexual a cada três dias, precisa de mais transformação social e individual? E quem está nas cadeias por preconceitos, nas ruas por serem abandonadas pelas famílias, com fome e sede por falta de quem as empregue? Todas as transexuais e travestis deviam, sim, ser vistas como Jesus aos olhos dos verdadeiros cristãos.

E eu, que não sou cristã, vi Jesus no rosto e no corpo da atriz e travesti santista Renata Carvalho. Eu, que não preciso da alcunha de cristã, mas sei incorporar alguns lindos ensinamentos de Jesus, entendi a mensagem tocante que ela nos passava. Que Jesus, também, era um pária social. Jesus sempre se aliou às prostitutas, aos pobres e aos pecadores, aos marginalizados. E rejeitou os fariseus (lembram deles?), aqueles religiosos que se sentiam superiores ao resto da sociedade por se encaixarem numa série de normas vazias. Jesus tinha escárnio por essa turma.

A mim parece que uma certa corja falsamente religiosa da política brasileira e grupos dentro das próprias igrejas cristãs deixaram de ler de fato o evangelho para se tornarem adeptos do farisaísmo. Fariseus, sim, sem nenhum eufemismo, calaram o belo trabalho de Renata, que, como Jesus, pregava a aceitação às diferenças, o amor e a paz não apesar delas, mas por causa delas. E, como Jesus, está agora silenciosa na cruz da marginalização do mundo artístico. E eu, Renata, que sou parte dessa sociedade que te atira pedras e cusparadas (me perdoe!), me sento aos pés da sua cruz como as Marias do Evangelho, em luto pela morte de sua liberdade de expressão.

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