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A história de um menino negro que foi salvo por um bordado

Único desenhista negro da equipe de Oscar Niemeyer, Willy Bezerra Mello teve de correr muito para aprender a reagir ao preconceito

atualizado

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Divulgação/Foto de família
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1 de 1 willy - Foto: Divulgação/Foto de família

Num dia de novembro de 2008, conheci um homem muito tímido. Fui à casa dele, no Guará. Casa original, modesta. Na parede da sala, desenhos de negros e negras, entidades de uma religião ancestral, grafismos em cores fortes. Bico-de-pena, colagem, tapeçaria, pintura em acrílico.

O homem era negro, magro, falava com vagar e não alterava o tom de voz, como se conversasse consigo mesmo. Eram dois num só, o desenhista Willy Bezerra de Mello e o artista plástico Olumello. Teimava com um câncer linfático, estava sem barba e sem bigode, por isso não se deixou fotografar. Mas deu palavra ao acontecimento que o fez se reconhecer negro.

Willy Bezerra de Mello/ Reprodução

Tinha 8 anos e estudava no Colégio Parisiense, escola particular do Rio de Janeiro, nos anos 40 do século passado. A aula era de educação física e o professor, um homem forte, alto, louro, e todos o chamavam de Tarzan, e ele atendia com indisfarçável gosto.

Tarzan mandou que todas as crianças corressem em volta do campo de futebol. Os alunos só poderiam parar quando o professor determinasse nominalmente um a um. E assim foi: João, Pedro, Estefânia, Catarina… e João, Pedro, Estefânia, Catarina obedeciam. “Miquimba”, ordenou Tarzan. Nenhum dos estudantes parou. “Miquimba”, repetiu o louro e todos continuaram a correr.

Até que o professor se aproximou do grupo que ainda corria, olhou para o único negro da turma e gritou ao modo rei da selva: “Miquimba, pode parar!”.

O menino preto, filho de um motorista de táxi e de uma bordadeira, seguiu correndo. O professor insistiu mais uma vez e decidiu ver até onde iria a desobediência de Miquimba, termo iorubá que pode significar, num xingamento, “macaquinho”. O garoto continuou a atividade física e dizia de si pra si: “Esse Miquimba não sou eu, não sou eu”. Não conseguia acreditar na ofensa, aquilo não estava acontecendo e mesmo que tivesse não podia passar recibo para os amiguinhos nem para si mesmo.

Willy correu até que perdeu as forças e caiu. Levou uma bronca e um castigo: preencher toda uma folha de papel almaço com a frase: “Devo obedecer meus professores, devo obedecer meus professores, devo obedecer meus professores…”

Em casa, Willy contou a humilhação para a mãe, dona Carmem, que abraçou o filho bem apertado até o menino perder o fôlego. Decidiram não contar nada ao pai temendo a reação dele. Antônio Bezerra de Mello era um negro altivo, orgulhoso da história da cor de sua pele, e que vivia nos ambientes boêmios/intelectuais do Rio daquela época.

Dona Carmem pediu ao filho: “Cumpra o castigo, entregue para o professor, e se ele te chamar de Miquimba de novo, aja do mesmo jeito”. Naquela noite, dona Carmem bordou o nome do filho – Willy – no peito da camisa do uniforme escolar.

Na aula seguinte, Willy se aproximou do professor, entregou-lhe as folhas com o castigo cumprido, apontou o dedo para o bordado e disse: “Esse é meu nome”.

Willy Bezerra Mello foi o único negro da equipe de desenhistas de Oscar Niemeyer. Detalhou muito dos projetos do arquiteto. Morreu em 2012, aos 77 anos.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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