Solo seco e poeira no lugar de água: em Goiás, o retrato da crise hídrica nacional
Reservatório da Usina Hidrelétrica de Itumbiara tem pior índice de volume de água do país e fica na região que mais preocupa, devido à seca
atualizado
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Goiânia – Imagens de satélite usadas em aplicativos de geolocalização ainda indicam a existência de água, muita água, em pontos extremos do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itumbiara, entre Goiás e Minas Gerais. Basta ir até esses locais, no entanto, para ver de perto o reflexo rápido da seca que ameaça a produção de energia no Brasil. Onde antes havia água, mostrada pela cor azul na tela do aplicativo, hoje há pasto, poeira e mato seco.
Localizado sobre a bacia do rio Paranaíba e, portanto, integrante da Bacia do Paraná, que possui a maior capacidade de produção de energia por hidrelétricas do país, o reservatório de Itumbiara é hoje o que registra o menor índice de volume útil de água – na casa dos 10% -, entre todos os reservatórios de usinas do Brasil. Fica exatamente na região tida como o centro da crise hídrica que preocupa a operação do sistema elétrico nacional.
Para quem mora nas cidades próximas ou depende economicamente das atividades geradas pelo lago (pesca, turismo e outras), a percepção é uma só: o nível da água reduziu bruscamente este ano, e o período de estiagem está apenas no início. Na comparação da série histórica, levando em consideração a mesma data, os volumes atuais de água são os menores já registrados na maioria dos reservatórios da região, entre eles o de Itumbiara.
No dia 13 de julho do ano passado, o volume útil de água no lago era de 61,14%. Em 2019, no mesmo dia, 47,38% e, em 2018, 54,22%, conforme dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Na mesma data, este ano, o índice foi de 10,37%. Volume útil é a quantidade de água acima do nível mínimo, que possibilita o funcionamento da usina e, portanto, a produção de energia elétrica. Abaixo desse nível, a usina não funciona.
Como a maioria dos reservatórios ao longo do rio Paranaíba – além de Itumbiara, São Simão, Emborcação e Nova Ponte – enfrenta a mesma situação, a lógica do Sistema Interligado Nacional (SIN), que viabiliza a abertura de comportas e o manejo de água de um lago para o outro, fica prejudicada. Resta, apenas, a opção de administrar a produção de energia, entre as usinas, de um jeito que se gaste menos recursos, onde possui menos água.
A usina de Itumbiara, que tem capacidade para produzir 2.082 megawatts (MW), produz hoje, de acordo com informações enviadas ao Metrópoles por Furnas, empresa responsável pela operação da usina, apenas 14,89% dessa capacidade, ou seja, em torno de 310 MW. Na usina de Marimbondo, em Minas, cujo reservatório é o segundo pior em volume de água, no Brasil, a produção atual está em 23,61% da capacidade.

Área antes inundada pelo reservatório da Usina Hidrelétrica de Itumbiara Vinícius Schmidt/Metrópoles

Marcas da água continuam no chão. Ao fundo, água do reservatório, muito recuado Vinícius Schmidt/Metrópoles

Índice de volume útil da água no local é de 10%, o menor entre todos os reservatórios de usina no Brasil Vinícius Schmidt/Metrópoles

A usina, vista de longe. Ela tem capacidade para produzir 2.082 MW, mas entrega, atualmente, em razão da pouca água, menos de 15% Vinícius Schmidt/Metrópoles

João Vitorino de Oliveira, 88 anos, eletricista aposentado de Furnas: "Não existe mais o que vi um dia" Vinícius Schmidt/Metrópoles

João mora em Araporã (MG), na divisa com Goiás, e ajudou na construção da usina Vinícius Schmidt/Metrópoles

O aposentado visita com frequência o ponto onde, antes, a água do reservatório chegava, nas margens da BR-452. "Não tenho esperança de ver mais", diz Vinícius Schmidt/Metrópoles

O espaço antes inundado pela água virou um descampado seco, com nascentes expostas Vinícius Schmidt/Metrópoles

Canal de concreto, por onde a água do reservatório passava antes, embaixo da rodovia, e chegava até a outra margem Vinícius Schmidt/Metrópoles

Local está praticamente seco, restando a água da nascente de um córrego que luta para sobreviver Vinícius Schmidt/Metrópoles

Entrada da Usina Hidrelétrica de Itumbiara Vinícius Schmidt/Metrópoles

Energia elétrica está cada vez mais cara Vinícius Schmidt/Metrópoles

Marcador colocado por Furnas define a cota máxima da usina (522.2). Hoje, o nível da água está na cota 499.2 Vinícius Schmidt/Metrópoles

Moradores da região lamentam a situação. Reservatório fica sobre a Bacia do Paranaíba, que vive a pior estiagem desde 1981 Vinícius Schmidt/Metrópoles

Previsão é de retomada das chuvas somente a partir de novembro Vinícius Schmidt/Metrópoles

Seca é considerada grave e extrema na região, desde 2014 Vinícius Schmidt/Metrópoles

Demais reservatórios de usina da Bacia do Paranaíba passam pela mesma situação de crise hídrica Vinícius Schmidt/Metrópoles
“Não tem mais aquilo que vi um dia”
O eletricista aposentado João Vitorino de Oliveira, de 88 anos, trabalhou na construção da usina de Itumbiara e teve passagem, também, pela usina de Marimbondo. Natural do sul de Minas, ele se mudou para Araporã (MG), na divisa com Goiás, há 42 anos, quando a barragem estava sendo levantada e, desde então, continua na cidade. “Ajudei a fazer isso aí tudo. Trabalhei em Furnas, era eletricista”, conta o idoso.
A reportagem do Metrópoles encontrou João, por acaso, nas margens da BR-452, no exato ponto, de acordo com os dados do aplicativo de geolocalização, em que as águas do reservatório de Itumbiara deveriam chegar, passando por um túnel de concreto embaixo da rodovia, e se estenderem até a outra margem. No local, formou-se um imenso descampado seco, sem sinal próximo de água, mas que um dia esteve totalmente inundado.
“Eu vi a água aqui, no pé dessas árvores. Não tem mais aquilo que eu vi um dia. Hoje é só pasto. Venho aqui direto, paro e fico olhando. Tenho saudade daquele tempo. A gente lembra e tem saudade. Isso aqui era um ‘mar medonho’. Acabar desse jeito é triste. O clima piorou, né. As águas estão acabando e vão acabar mais”, lamenta João.
Veja o relato dele e de outros moradores da região:
Pior seca desde 1981
O panorama traçado em maio deste ano pelo Conselho Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, informou uma quantidade de chuva sobre a Bacia do Rio Paraná abaixo da média registrada nos últimos 22 anos. A porção mais vulnerável é, justamente, a parte alta da bacia, onde ficam o Rio Paranaíba e o reservatório de Itumbiara.
Nessa região, o contexto de estiagem é considerado o pior desde 1981. O resultado desse acirramento, ano após ano, reflete na classificação da seca feita pelo Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas (ANA). Desde 2014, o nível tem se mantido entre seca severa, extrema e excepcional. A avaliação é que o período chuvoso encerrou-se de forma prematura este ano e só deve voltar a partir de outubro.
A previsão do ONS, conforme nota técnica enviada à ANA, no mês passado, é a de que, se a situação não melhorar, oito grandes usinas da Bacia do Paraná, incluindo a de Itumbiara e as demais que estão com baixo volume de água na região do Paranaíba, poderão entrar em colapso até o fim de novembro. Cerca de um terço da população brasileira vive sobre a Bacia do Paraná. É onde se concentra a maior demanda por água e energia.

Marcos Antônio da Costa, pescador e presidente da Associação de Pesca e Aquicultura de Itumbiara (API), resiste na região Vinícius Schmidt/Metrópoles

Segundo ele, já não dá mais para viver só da pesca. Quantidade de peixes diminuiu, e redução do nível da água prejudica instalação de tanques de reprodução Vinícius Schmidt/Metrópoles

Dez criadores de peixe da API já deixaram a região e foram procurar trabalho na cidade Vinícius Schmidt/Metrópoles

De 15 tanques de peixe, apenas sete continuam na região do lago onde mora Marcos e os colegas pescadores da API Vinícius Schmidt/Metrópoles

"A estiagem chegou muito cedo este ano. A chuva de junho não veio", diz Marcos Vinícius Schmidt/Metrópoles

Vinícius Schmidt/Metrópoles

Lago reduzido dificulta a pesca profissional e a aquicultura Vinícius Schmidt/Metrópoles

Leivis Carlos, presidente da Associação dos Pescadores Profissionais e Aquicultura de Itumbiara (APAI), exibe Pirarucu reproduzido em criatório da região Vinícius Schmidt/Metrópoles

Leivis diz que houve redução de 70% da reprodução de peixes na região Vinícius Schmidt/Metrópoles

"Antes, a gente vendia para outros locais. Hoje, não conseguimos atender à demanda interna", lamenta Vinícius Schmidt/Metrópoles

Paulo Roberto Borges, 66 anos, produtor rural, desistiu de investir na abertura de um loteamento com 150 unidades nas proximidades do lago. "Com água longe, ninguém quer comprar", ressalta Vinícius Schmidt/Metrópoles

Ele nasceu e foi criado na região de Araporã, cidade que fica no lado mineiro do lago: "É difícil o lago voltar onde já esteve um dia. Isso aqui era bonito demais" Vinícius Schmidt/Metrópoles

O pedreiro João Batista Rosa Ferreira, 48 anos, mora próximo ao reservatório, mas diz que a cada ano a água se afasta mais Vinícius Schmidt/Metrópoles

"Tem hora que a gente pensa que vai olhar aqui e não vai ter água mais", lamenta o pedreiro Vinícius Schmidt/Metrópoles

João lembra que estiagem está só no começo e que ainda há alguns meses pela frente: "A parte crítica ainda está por vir" Vinícius Schmidt/Metrópoles
Falta peixe, e pescadores começam a abandonar atividade
A redução do nível da água no reservatório de Itumbiara já prejudica diretamente quem vive e depende da pesca. Além de afugentar espécies e reduzir a quantidade de peixe disponível, diminui também o espaço para instalação de tanques de reprodução. Só na Associação de Pesca e Aquicultura de Itumbiara (API), uma das que fazem parte de cooperativa na cidade, 10 criadores de peixe já deixaram a atividade para buscar outras fontes de renda.
“Hoje, grande parte já teve que arrumar outra forma de ganhar dinheiro e sobreviver. De cinco, seis anos para cá, a maioria passou por isso. Não dá mais para viver só da pesca. A água abaixou muito, e rapidamente”, diz o presidente da API, o pescador Marcos Antônio da Costa.
A cooperativa de pescadores, comandada pela Associação dos Pescadores Profissionais e Aquicultura de Itumbiara (APPAI), calcula redução de 70% da produção de peixes na região. Segundo o presidente da associação, Leivis Carlos, o pescado disponível já não atende a demanda da cidade. “Antes, a gente conseguia vender para outros lugares. Hoje, já está vindo peixe de fora para abastecer aqui”, conta ele.
Marcos e Leivis são pescadores antigos e viram as diferentes fases do reservatório. Em 2008, por exemplo, o nível da água chegou bem perto da porta das casas de muitos deles. Nos últimos anos, isso já não aconteceu mais, e o cenário só piora com o passar do tempo. “Hoje, tem pescador ribeirinho que anda quase um quilômetro e meio para chegar ao lago”, relata Leivis.
