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Marajó: Damares diz investir R$ 718 mil em famílias da ilha, mas projeto nunca saiu do papel

Projeto de formação de famílias em Marajó (PA) aparece como executado em prestação de contas. Municípios, porém, não receberam a verba

atualizado

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Vinícius Schmidt/Metrópoles
Damares Alves com boné amarelo e os dizeres mulheres com Bolsonaro 22 - Metrópoles
1 de 1 Damares Alves com boné amarelo e os dizeres mulheres com Bolsonaro 22 - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

A gestão de Damares Alves (Republicanos) no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) afirma ter enviado R$ 718 mil para a realização de 70 encontros destinados à formação e ao apoio de famílias na Ilha de Marajó (PA). A verba, no entanto, nunca chegou aos municípios.

O recurso teria saído do antigo programa Abrace o Marajó. O valor consta no painel de monitoramento do programa Abrace o Marajó, responsável por reunir mais de 100 iniciativas do governo federal para a área, sob a gestão da pasta de Damares. Nomeado de Famílias Fortes, o projeto aparece como “executado” na prestação de contas da antiga equipe, mas nunca saiu do papel.

Marajó entrou nos holofotes quando, em 2022, Damares afirmou, sem provas, que crianças no arquipélago são traficadas e têm os dentes “arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. Neste ano, a senadora voltou a mencionar a ilha, ao dizer que pretende se tornar a “princesa do principado de Marajó”.

Promessa para famílias

Lançado sob nova roupagem em 2021 pela ex-ministra, o projeto Famílias Fortes foi idealizado para fortalecer as habilidades parentais dentro das famílias, com capacitações socioemocionais dos núcleos familiares. A medida segue uma metodologia criada na Oxford Brookes University, a fim de reduzir “comportamentos de risco, tais como o consumo de álcool e drogas, o abandono escolar, o envolvimento com violência, a iniciação sexual precoce e a gravidez na adolescência”, como consta no portal do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC).

No caso do arquipélago, o plano de ação do programa Abrace o Marajó previa o investimento de R$ 554 mil para a formação em sete municípios — Anajás, Bagre, Cachoeira do Arari, Curralinho, Gurupá, Salvaterra e Soure — até setembro de 2022. Porém, posteriormente, ficou decidido que Ponta de Pedras e Muaná também receberiam a verba.

Mapa com todos os municípios da Ilha do Marajó, Pará

Segundo dados do painel do programa, o valor destinado ao Famílias Fortes aparece superfaturado, com R$ 718 mil distribuídos para cidades.

Ainda de acordo com o levantamento, há mudanças significativas nos municípios abraçados pelo programa — duas cidades selecionadas no plano de ação não constam no painel, enquanto outras duas foram adicionadas.

Em seis municípios, o painel ainda mostra que 16 formações teriam acontecido, na seção “Meta Executada”.

Veja abaixo:

Cidades como Cachoeira do Arari teriam recebido R$ 143 mil. O painel aponta ainda a execução de 8 formações no município, em “meta executada”

Envolvidos negam recebimento de verba

Ainda de acordo com o plano de ação, a previsão era de que as formações fossem coordenadas e executadas pela Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), a partir de orçamento enviado pelo ministério de Damares à instituição. A universidade, no entanto, confirmou ao Metrópoles que nunca recebeu a verba prometida e que não há previsão para a iniciativa entrar em vigor.

“A Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), informa que o projeto não foi executado até o momento, pois não houve o repasse financeiro pela Secretaria Nacional da Família (SNF), extinta pelo atual governo. A Ufra continua aguardando o repasse dos recursos financeiros necessários para a execução do projeto ‘Fortalecimento dos Vínculos Familiares e Habilidades Parentais em municípios do Arquipélago do Marajó e do Nordeste Paraense’ para então, dar início as ações do ‘Programa Famílias Fortes’ no âmbito das regiões Paraenses”, diz trecho de nota.

Encontro entre Damares Alves e a então vice-reitora da Ufra, Janae Goncalves, em 2021, para conversar sobre a parceria do ministério com a instituição

O Metrópoles conversou com os nove municípios citados em todos os documentos oficiais e que estão presentes no painel de monitoramento do Abrace o Marajó. A maioria confirmou que não recebeu nenhum repasse financeiro para realizar o projeto. As cidades de Bagre, Curralinho e Salvaterra não responderam às tentativas de contato da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

Questionada sobre as divergências entre os dados e a realidade, Damares informou que o projeto Famílias Fortes “não prevê repasse de recursos diretamente para os municípios”. De acordo com a senadora,  um termo de descentralização foi assinado com a Ufra, “com repasse unicamente para essa instituição para realizar a capacitação de agentes públicos que atendem diretamente as famílias em diversos municípios do Marajó.”

O termo de descentralização, no entanto, trata-se de um compromisso de repasse orçamentário dos recursos e não uma execução financeira de fato – ou seja, uma promessa de pagamento. Quanto aos números apresentados no painel, a ex-ministra não respondeu de onde as informações de metas executadas partiam, apenas que “os valores de investimento descritos por município correspondem à estimativa de investimento pelos agentes capacitados”.

O vice-reitor da Ufra, Jaime Viana de Sousa, cujo nome aparece em contrato assinado com o MMFDH, confirmou que o termo de descentralização no valor de R$ 718.819,91 foi firmado entre a universidade e o antigo ministério em 2021, mas o repasse do recurso financeiro ainda não ocorreu.

Em nota, o vice-reitor  informou que a Ufra liquidou as notas fiscais com a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (Fadesp) para gerir a aplicação financeira do projeto Famílias Fortes em Marajó. No entanto, o início das formações segue paralisado, aguardando o envio dos recursos.

Iniciativa paralisada no MDHC

Consultado, o atual Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) confirmou que o projeto encontra-se em análise dentro da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, uma vez que a antiga responsável, a Secretaria Nacional da Família, foi extinta. A pasta destacou, ainda, que o antigo Abrace o Marajó foi suspenso e substituído por um novo programa, o Cidadania Marajó.

A professora e coordenadora da Ufra, Carla Moraes, relatou diversas tentativas de receber o recurso destinado ao projeto. “Solicitamos formalmente do Ministério de Direitos Humanos um posicionamento a respeito, mas infelizmente não tivemos o retorno”, disse.

Segundo a professora, mais de 200 contratos do Famílias Fortes estão parados, não só os relacionados à Ilha de Marajó.

Mesmo com o fim do Famílias Fortes, a gestão atual do MDHC afirmou ao Metrópoles que depositará os repasses destinados ao projeto até o fim de 2023, uma vez que os contratos foram assinados anteriormente.

“Programa fantasma”

Lançado em 3 de março de 2020 por decreto presidencial, o programa Abrace o Marajó era destinado a fornecer infraestrutura, desenvolvimento social, desenvolvimento produtivo e fortalecimento institucional para atender às demandas dos municípios de Marajó.

Membros de comunidades tradicionais na ilha contaram ao Metrópoles que chegaram a receber visitas e promessas da equipe de Damares Alves, mas que as propostas apresentadas não foram colocadas em prática.

“Em 2021, ela [a Damares] chegou a vir com alguns secretários, pegaram e registraram nossas demandas. Mas, quando enviamos e-mails mais tarde para saber dos projetos prometidos, só respondiam que já tinham encaminhado para o gabinete responsável. Depois, mais nada”, relata Deco Alves, liderança na comunidade quilombola Deus Ajude, em Salvaterra.

A iniciativa de Damares foi criticada em nota pública divulgada por 64 organizações civis e, posteriormente, se transformou em questionamento por parte da Defensoria Pública da União (DPU).

Em resposta à DPU, a equipe de Damares alegou que a Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA) e a Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA) eram as entidades representativas da população local no comitê gestor do programa.

“Quer dizer, ela escolheu a representação de fazendeiros e latifundiários para discutir, entre outras políticas, o destino de povos tradicionais na região”, questiona Luti Guedes, diretor-executivo do Observatório do Marajó.

O ativista ainda acusou a ex-ministra de tentar confundir a sociedade e diminuir a transparência sobre o que de fato foi entregue.

“A verdade é que era um ‘programa fantasma’. Ele envelopou uma série de projetos para a região, de diferentes ministérios, e anunciou em um nome bonito, mas sem o compromisso de realizar uma política pública de forma estruturada. É o que nos mostram os números de investimentos mal distribuídos e muito menos geridos. Fica difícil de acompanhar assim”, pontua.

Procurada pela reportagem, a assessoria da senadora afirmou que, “independente de posicionamento político, todo governo tem seus projetos atacados por um ou outro grupo e isso é normal”, além de que “deve haver desconhecimento quanto aos resultados entregues pelo Programa Abrace o Marajó”. A equipe de Damares também reforçou a leitura do relatório com as entregas alcançadas referentes ao projeto.

Com um total de R$ 829.838.339,40 (valor atualizado em novembro de 2022), os recursos foram divididos entre os 133 projetos, atividades e iniciativas ativas. Confira abaixo, as entregas previstas no relatório da gestão da ex-ministra:

  • Entrega de mais de 140 mil cestas básicas e 1,2 milhão de itens de higiene pessoal, com orçamento de R$ 12 milhões;
  • Investimento de R$ 1.091.680 para realizar o diagnóstico e fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos de Criança e Adolescentes no Marajó;
  • Estudo sobre a acessibilidade nos municípios do Marajó, com custo de R$ 449.654;
  • Disponibilização de minuta de Projeto de Lei para criação do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência;
  • Quarenta certificados emitidos para mulheres extrativistas formadas no arquipélago, com formação realizada por meio de TED no valor de R$ 183.020,98;
  • Projeto de construção da Casa da Mulher — espaço para acolher vítimas de violência— em Breves, que aguarda licitação para início da obra. O investimento previsto é de R$ 823 mil;
  • Cerca de 500 jovens com idade entre 18 e 29 anos capacitados para o empreendedorismo com treinamento, mentoria, oficinas e palestras em intercâmbios remotos. O investimento é de aproximadamente R$ 1 milhão;
  • Projeto ainda em execução de capacitação direitos humanos, com 282 matrículas confirmadas em Breves e outras 23 em Portel;
  • Disponibilização de registro civil de recém-nascidos, gratuitamente, dentro de unidades hospitalares. E implementação de postos de atendimento de cartório para registro em maternidades no Marajó;
  • Liberação de R$ 2,5 milhões para cinco vencedores do chamamento público que premiou iniciativas voltadas à bioeconomia, economia circular e infraestrutura social nos municípios do arquipélago;
  • Entrega de 304 computadores desktop para as escolas municipais do Marajó. Projeto sem custos à União;
  • Projeto de clínicas de futebol feminino e masculino na região. Além da realização de um torneio de futebol entre a comunidade local, com entrega de certificados e medalhas — totalizando um investimento de R$ 200 mil;
  • Formação de profissionais para lidar com o desenvolvimento da criança, visita domiciliar e capacitação técnica em gestão e monitoramento do Programa Criança Feliz. O orçamento previsto e executado foi R$ 9.225.450,85;
  • Formação e implementação da metodologia de grupos de ajuda com o objetivo de promover o cuidado de usuários de drogas e seus familiares. O orçamento em execução é de R$ 30 mil;
  • Construção, em andamento, de um navio de assistência hospitalar. Com orçamento de R$ 14,25 milhões, sendo que R$ 4,105 milhões foram executados. A entrega do projeto está prevista para 2023;
  • Projeto para assegurar às mulheres de Breves e Muaná o direito ao planejamento reprodutivo, com R$ 1 milhão executados;
  • Doze visitas da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) ao arquipélago para detectar denúncias de violações de direitos, com verba de R$ 144 mil;
  • Ações e apoio técnico a gestores e equipes de referência para aprimorar a oferta dos serviços e programas de assistência social em Marajó. Foram executados R$ 13.245 em nove municípios;
  • Formação de 130 agentes públicos marajoaras, sendo 83 em educação, 26 em saúde e 28 na Plataforma Mais Brasil;
  • Catalogação de 240 iniciativas empreendedoras, além de consultorias de capacitação para o mercado digital. O investimento é de R$ 683 mil;
  • Compra de 11 caminhões com baú isotérmico para recebimento e distribuição de alimentos adquiridos dos agricultores familiares às creches, escolas públicas, restaurantes populares, cozinhas comunitárias, entre outros. No momento, há uma verba executada de R$ 1.625.779;
  • Compra de alimentos produzidos por 110 agricultores familiares, metade da estimativa inicial. Foram executados R$ 489.461,26;
  • Atendimento de 205 famílias em situação de vulnerabilidade social da zona rural do Marajó, com objetivo de promover a estruturação produtiva e segurança alimentar e nutricional delas. O orçamento executado é de R$ 474 mil;
  • Oficinas de sensibilização e divulgação sobre a importância da prevenção à exploração sexual de crianças e adolescentes no setor turístico. Foram aplicados R$ 100 mil;
  • Entrega de 14.219 títulos de regularização fundiária, além do desbloqueio e emissão de Contrato de Concessão de Uso (CCU);
  • Fornecimento do serviço público de energia elétrica a 4.273 famílias nos municípios de Bagre, Curralinho e Melgaço, com investimento de R$ 119.205.846,58;
  • Fornecimento do serviço público de energia elétricas em comunidades isoladas do Marajó. Ao todo, 7.974 famílias foram alcançadas em três cidades marajoaras, com investimento de R$ 320.460.547,32. Além disso, a pasta liberou a primeira parcela de R$ 79 mil para outros quatro municípios;
  • Entrega de 408 pontos de internet no Marajó, sendo 174 em 2020, 166 em 2021 e 68 no ano passado. O orçamento total foi de R$ 940,8 mil.

Outro lado

Após publicação da matéria, a equipe de Damares Alves procurou a reportagem e disse que realizou todas as etapas necessárias para execução do projeto. No entanto, por motivos de “morosidade” da universidade parceira, não conseguiu contemplar os objetivos propostos.

“Foram enviados e-mails com questionamentos sobre a morosidade na aplicação dos recursos, até então, atribuídos à falta de assinatura de contrato por parte da Ufra com a Fundação de Apoio. A equipe da Secretaria Nacional da Família (SNF) entrou em contato com a instituição com o fim de questionar se o contrato com a FADESP havia sido assinado e se algum apoio a mais, por parte da SNF, poderia ser dado”, explicou, em nota, a equipe da senadora.

A assessoria acrescentou ainda que o projeto Famílias Fortes foi bem sucedido em outras universidades parceiras, e que a Ufra foi a única instituição a não cumprir com o acordo estabelecido.

“O MMFDH empenhou o valor citado na matéria e no título da mesma (R$ 718 mil) mas, por falta de execução unicamente por parte da UFRA, não houve início da realização das oficinas do Famílias Fortes. Ressalta-se que, em diversas visitas das comitivas do MMFDH ao arquipélago, a SNF realizou reuniões e oficinas visando demonstrar que sempre estava à disposição para auxiliar na execução prática tanto do Famílias Fortes como do Reconecte ou no que fosse preciso”, diz.

Por fim, a ex-ministra alega que “o conceito adotado para as ações concluídas tinha como ótica a questão orçamentária até o momento do empenho” e, portanto, o projeto foi considerado executado diante da separação da verba, mesmo sem a entrega concluída ou qualquer formação ter sido comprovada.

Questionada sobre as informações enviadas pela senadora, a Ufra retornou ao Metrópoles que celebrou o Termo de Execução Descentralizado (TED), “cumprindo todos os prazos para a execução do projeto de extensão” e continua a aguardar a liberação da verba para o início das atividades.

Membros do projeto confirmaram à reportagem, porém, que o termo assinado com a antiga gestão precisou ser revisto diversas vezes, diante da incompatibilidade do orçamento previsto pelo MMFDH e da meta proposta, o que pode ter contribuído para a “morosidade” mencionada pela ministra.

 

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