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Como um furto de desodorantes e chicletes foi parar no STF?

Apesar de parecerem simples, casos de menor repercussão mobilizam diversas instâncias e oneram a máquina judiciária

atualizado

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Daniel Ferreira/Metrópoles
supremo tribunal federal stf
1 de 1 supremo tribunal federal stf - Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus a uma mulher acusada de tentar furtar dois frascos de desodorante e gomas de mascar de um supermercado em Minas Gerais. As peculiaridades do caso e a “insignificância” do valor envolvido no crime – R$ 42 – foram levadas a julgamento pela defesa da ré e a 2ª Turma da Corte acolheu, por maioria, o pedido.

Essa não é a primeira vez que um caso como esse vai parar na instância máxima do Judiciário brasileiro. O “princípio da insignificância”, quando não se considera o ato praticado em um crime e o réu é absolvido, já foi invocado no STF para discutir, por exemplo, a pesca irregular de 25 quilos de peixe, o furto de um par de chinelos de R$ 16, de peças de picanha, de sabonetes íntimos e até de um galo e uma galinha.

Apesar de parecerem simples, todos estes casos mobilizaram diversas instâncias da máquina judiciária e geraram um passivo para a população. E tirar a deusa Thêmis da cadeira suprema pode demorar e custar caro.

Confira abaixo o caminho do processo, tendo como exemplo o caso da tentativa de furto no supermercado de Minas:

 

 

A incapacidade de outros graus de jurisdição solucionarem a questão e a quantidade de mecanismos disponíveis para se recorrer são apontados como fatores que permitem, por vezes, o debate de questões dessa natureza em altas Cortes, como o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Para o juiz João Ricardo Costa, titular do 1º Juizado da 16ª Vara Cível de Porto Alegre (RS), o Brasil tem um sistema recursal “completamente esquizofrênico”, com uma infinidade de recursos. Como exemplo dos efeitos dessa máquina de gargalo pouco estreito, o magistrado cita um processo coletivo sob sua competência que chegou a ter 90 apelos.

“É essa permissibilidade do sistema recursal brasileiro que tem onerado e causado a morosidade da Justiça. O Supremo Tribunal Federal não deveria ser um tribunal para receber as demandas ordinárias, e sim as de ordem constitucional. E não é, na verdade, o que acontece. Isso faz com que o Supremo esteja assoberbado – como todos os tribunais estão –, resolvendo problemas que não são da sua competência”, avalia o juiz.

Direito sagrado
Esse não é o ponto de vista, entretanto, do advogado Tales Castelo Branco. Para o criminalista, “a perseguição ao direito é sagrada e não deve ser sobrestada”. Segundo ele, há uma certa antipatia pelo excesso de recursos na Justiça, mas, na verdade, eles são compatíveis com o Estado Democrático de Direito e com a garantia da ampla defesa.

Não há direito minúsculo e direito maiúsculo. Todo direito é importante para quem o reclama, para quem o detém, para quem protesta por ele. Acho que o recurso deve ser amplo e não deve ser cortado, diminuído ou regulamentado em excesso

Tales Castelo Branco, advogado criminalista

De acordo com o relatório Justiça em Números de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só em 2015 entraram pela larga porta do Judiciário brasileiro aproximadamente 3 milhões de novos casos criminais. Foram 67 mil só nos tribunais superiores. Ao todo, são mais de 102 milhões de processos em tramitação no país.

“Não só no âmbito criminal, mas no civil, muitas causas são trazidas à Justiça, com um custo absurdamente elevado, e poderiam ser perfeitamente solucionadas por vias extrajudiciais. A movimentação da máquina Judiciária tem um custo. E mais, em função de alguns artifícios ou mecanismos, essas ações por vezes podem chegar ao STJ e ao STF. Ou seja, muito esforço para demandas muito pequenas”, avalia o juiz Gervásio dos Santos, da 6ª Vara Cível de São Luís (MA).

As despesas de todo o Poder Judiciário, segundo o estudo do CNJ, somaram aproximadamente R$ 79,2 bilhões em 2015, o que equivale a um custo pelo serviço de Justiça, por habitante, de R$ 387,56 (confira números abaixo). Pelo relatório do Conselho, 89% desse total se referem a gastos como remuneração de magistrados, servidores, terceirizados, além do pagamento de auxílios e assistências. A tendência, segundo o relatório, é de crescimento.

Solução extrajudicial
A dificuldade em dar vazão aos conflitos que diariamente batem à porta da Justiça brasileira por outros meios, que não os judiciais, contribui com esse cenário, segundo Gervásio.

“Hoje temos praticamente uma ação para cada dois habitantes do país. A capacidade financeira do Judiciário de responder a essa demanda é limitada pelo orçamento, pela impossibilidade de contratar mais juízes, mais servidores, de conseguir novos fóruns, porque não produz dinheiro. O Judiciário tem o seu custo”, destaca.

Segundo o magistrado, se não forem criados mecanismos que possam “solucionar os litígios independentemente do Judiciário, antes que o litígio surja”, não há mudança de código ou aumento do número de juízes que evitem o colapso do sistema. “O Judiciário deveria ser preservado para conflitos que realmente têm que ser enfrentados”, conclui o juiz.

*Dados retirados do relatório Justiça em Números 2016, do CNJ.
**O número de recursos possíveis e o custo médio por processo foram estimados por magistrado.

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