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Consultor que atuou no apagão de 2001 prevê racionamento em 2022

Adilson de Oliveira critica governo na condução da crise hídrica e afirma que o brasileiro pagará cada vez mais caro pela energia

atualizado

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CEBRI/Reprodução
Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), participou da reforma do setor elétrico como consultor do Ministério de Minas e Energia
1 de 1 Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), participou da reforma do setor elétrico como consultor do Ministério de Minas e Energia - Foto: CEBRI/Reprodução

O brasileiro deve acostumar-se com dois fatos indigestos quando o assunto é energia elétrica: o aumento das contas e a possibilidade de falhas no fornecimento. A escassez de chuvas durante a maior crise hídrica dos últimos 91 anos escancarou problemas que o setor enfrenta e erros do governo na condução da geração, distribuição e administração do sistema.

Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), participou da reforma do setor elétrico como consultor do Ministério de Minas e Energia durante o segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em maio de 2001, o governo criou a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica (GCE) para lidar com problemas de geração e apagões. À época, o país sofria constantes blecautes. Para o docente, o momento atual é crítico e exige atitudes mais duras.

Em entrevista ao Metrópoles, o especialista falou da crise de energia, do custo aos consumidores, criticou a privatização da Eletrobras e apontou erros da gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na condução das políticas públicas. Oliveira afirma que o Brasil viverá situação crítica a partir de agosto e setembro. “Um apagão generalizado acho que o governo tentará evitar, mas medidas restritivas, como racionamento, acho que é possível”, alerta.

Nas últimas semanas, o governo anunciou medidas na tentativa de conter a crise, como a compra de energia produzida por países vizinhos, mudanças na vazão dos reservatórios das hidrelétricas e ativação das usinas termelétricas — que aumentam os custos ao consumidor.

O ex-consultor avalia que somente isso não basta. “O governo deveria ter agido em 2019”, vaticina. E emenda: “Provavelmente, podemos não ter racionamento neste ano, mas teremos no próximo. É uma questão de tempo”.

Na conversa exclusiva, o especialista defende reforma ampla no setor e critica a privatização da Eletrobras, aprovada pelo Senado e que agora vai à Câmara. “No momento que vivemos a pior crise você quer privatizar os principais reservatórios”, pondera. A seguir, confira os principais trechos da entrevista.

Qual a avaliação do senhor sobre a atual situação do sistema energético?

A situação hídrica é evidentemente muito grave. Todos os indicadores que nós temos são pessimistas, e a projeção é que deve se prolongar para o próximo ano. Viveremos uma situação crítica a partir de agosto e setembro. O governo começa a trabalhar, mas sempre passando os custos para os consumidores. Isso é muito preocupante. No ano que vem, a retomada da economia vai sofrer muito com esse processo. Um dos exemplos é o parque industrial, que não estará tão competitivo como os externos.

O Brasil está próximo de um apagão?

É difícil prever. A perspectiva de ter cortes, em particular em áreas centralizadas, é muito provável que venha acontecer. Acredito que vamos ter de conviver com esse tipo de fenômeno. Agora, um apagão generalizado acho que o governo tentará evitar, mas medidas restritivas, como racionamento, acho que é possível. Raciona para evitar o colapso do sistema como um todo. Seria inimaginável assistir ao Brasil inteiro sem energia por dois dias. Seria um caos.

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Qual é o principal problema do nosso modelo de geração de energia?

O primeiro ponto é: o comando da gestão das águas. Ele tem que sair do sistema elétrico [Operador Nacional do Sistema Elétrico] e ir para a ANA [Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico]. A agência tem que dizer assim: “Eu dou essa água [para a produção de energia] e você faz outra coisa. A água deve ser usada principalmente para o abastecimento das cidades. Energia pode ser gerada por outras fontes. O segundo é: uma profunda revisão na sistemática de revisão do sistema elétrico. Todos dizem que temos um sistema absurdo. A hidrelétrica gerando ou não ela vai ganhar. Isto é, em alguns meses se produz menos, na expectativa de se compensar em outros. É o que se chama de ‘garantias físicas’. Elas estão nos contratos de concessão e não correspondem à realidade. Na prática, é pagar por 100%, mas o supermercado entregar somente 70% do que comprou. Isso tem que ser removido imediatamente.

Estamos atravessando a maior crise hídrica em 91 anos. Qual legado esta experiência deixa para o setor elétrico?

Para que fizemos reservatórios? Fizemos esperando que em alguns períodos não vai chover. Em vez de preservar os reservatórios, gastamos a água esperando que iria chover. O que não aconteceu. Os reservatórios são como “seguros” do sistema hídrico. Infelizmente, o que está acontecendo é o inverso. Dispensa o seguro e acredita que lá na frente vai chover. A falta de preocupação é porque independentemente do que acontecer, se tiver água ou não, a energia vai continuar sendo gerada com outros encargos, que serão repassados ao consumidor. É a forma do nosso sistema. As empresas ganham chovendo ou não. É um erro. A responsabilidade de gerir é das empresas, não do consumidor.

O país precisa fazer reforma no setor?

Já falo isso há quatro anos (risos). Precisamos rever tudo, completamente. É uma gestão que precisa ser totalmente revista. Outra configuração, outra forma de gestão. As garantias físicas e o modelo de otimização, que desotimiza e provoca o esgotamento de forma antecipada, devem ser abandonados. Vou dar um exemplo concreto. De janeiro a março, deveríamos ter enchido os reservatórios. O que o sistema fez? Disse “Não se preocupe” e confiou nas térmicas. O problema é que não se tem condições de despachar a energia gerada pelas térmicas, não se tem combustível para isso, não tem linha de transmissão para colocar no mercado. Precisamos reformar de forma ampla e profunda. Abandonar este modelo e criar outra lógica.

Principais órgãos do setor elétrico:

  • Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
  • Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
  • Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
  • Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico
  • Empresa de Pesquisa Energética (EPE)
  • Ministério de Minas e Energia

O senhor concorda com a privatização da Eletrobras?

Me parece que vivemos num mundo paralelo (risos). No momento em que vivemos a pior crise, você quer privatizar os principais reservatórios, que são os da Eletrobras. Na verdade, o governo quer fazer uma privatização para mostrar ao mercado que é capaz. Isso não tem lógica econômica ou social. Isso é um ato político. Qual o preço disso? Ninguém sabe. Mas o custo vai cair nas costas dos brasileiros. É um absurdo essa privatização, com essas regras e neste momento. Mas como a terra é plana (risos)…

A tendência é que a conta de energia fique cada vez mais cara?

Sim e cada vez mais rápido. A Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] calculou que a ativação das termelétricas até agora custarão R$ 9 bilhões. Com as medidas que serão impostas pela Eletrobras, são mais outros R$ 50 bilhões. O tesouro está numa situação financeira ruim. Os custos vão vir para nós, e os brasileiros que vão sofrer. Os pequenos negócios não conseguem suprir a indústria. É um período absurdo.

O governo tem afrouxado regras, como a vazão de hidrelétricas e a possibilidade de compra de energia produzida no exterior, isso é suficiente para conter a crise?

Obviamente que não. Ouvi o ministro [de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque] dizer que vai comprar energia da Argentina. Agora ele descobriu que no inverno a geração por termelétrica cai, porque lá se usa o gás para aquecimento. Não gera energia. É viver um mundo paralelo. Agora ele descobriu que não é possível.

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O governo demorou a agir diante do problema?

Sem dúvidas. Na verdade, o governo deveria ter agido em 2019. O custo de ligar as termelétricas em 2019 para encher os reservatórios, você iria gastar, mas seria menor do que se paga agora por deixar os reservatórios baixos. Quando você tem um reservatório de água em casa e ele está cheio, a água chega com pressão na torneira. Quando a água vai acabando, a pressão diminui, mas mesmo assim chega na torneira. É a mesma lógica das hidrelétricas. Com menos pressão, a capacidade de gerar energia vai caindo. Quanto mais baixo, menor a quantidade de energia gerada, apesar da mesma quantidade de água usada. Os reflexos de agora são frutos de erros do passado.

Quais as perspectivas para 2022?

Vi uma palestra do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], e a expectativa é de um 2022 mais seco ainda. É uma previsão baseada em modelos, mas a consistência do modelo é muito grande. A probabilidade de vir ocorrer é grande. Vamos torcer para que a gente atravesse o ano sem cataclismas, mas vamos entrar o próximo ano com problemas graves ainda. Provavelmente, podemos não ter racionamento neste ano, mas teremos ano que vem. É uma questão de tempo. O conjunto de medidas que temos hoje é muito limitado em curto prazo.

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