metropoles.com

Conheça as mulheres que revolucionaram investigações de feminicídios

Profissionais seguem o rastro de homens que matam suas companheiras e aprenderam a ler as marcas do ódio

atualizado

Compartilhar notícia

Otávio Neto / Secretaria de Segurança Pública do Piauí
WhatsApp Image 2018-09-07 at 15.24.56
1 de 1 WhatsApp Image 2018-09-07 at 15.24.56 - Foto: Otávio Neto / Secretaria de Segurança Pública do Piauí

Fãs de seriados policiais já sabem: a cena do crime fala. Qualquer vestígio aparentemente inocente pode ser o fio condutor de uma investigação. Como personagens que ganharam vida e saíram da tela, mulheres brasileiras – peritas, delegadas e acadêmicas – aprenderam a desvendar sinais de crimes motivados por questões de gênero.

Com isso, essas profissionais multiplicaram tipificações de feminicídios em seus estados de origem e garantiram punições mais rigorosas a homens que não amavam as mulheres. Antes da atuação delas, os crimes eram tratados como homicídios comuns e tinham penas mais brandas.

Em março de 2015, a Lei nº 13.104/2015 alterou o Código Penal Brasileiro e incluiu o feminicídio como uma das formas qualificadas do homicídio. É quando a morte de uma mulher decorre de violência doméstica e familiar ou quando provocada por menosprezo e discriminação da condição do sexo feminino.

“As formas de violência geralmente envolvem a imposição de um sofrimento adicional para as vítimas, tais como a violência sexual, cárcere privado, emprego de tortura, uso de meio cruel ou degradante, mutilação ou desfiguração das partes do corpo associadas à feminilidade (rosto, seios, ventre, órgãos sexuais)”, descreve a cartilha da ONU com diretrizes para investigações com perspectiva de gênero.

Uma das pessoas convidadas para formular o documento da ONU  foi a perita criminal da polícia do Rio Grande do Sul e ex-diretora do Departamento de Criminalística do estado, Andréa de Paula Brochier.

Andrea Brochier é referência em investigações com perspectiva de gênero

Brochier estabeleceu nas perícias do estado o uso de técnicas de identificação da violência simbólica. “São atos que comprovam o ódio do agressor em relação à vítima. Destruição de objetos pessoais, de livros, de cadernos, de objetos relacionados à profissão, maltratar um animal de estimação para infringir sofrimento à vítima”, lista.

Sob comando de Brochier, as equipes passaram por treinamento para aprender a reconhecer esses sinais em cenas de crimes e relatá-los em documentos oficiais.

“A descrição é importante porque no decorrer da investigação você vai analisar o que a perícia localizou de vestígios no local com as outras provas. Um vestígio material pode virar evidência e comprovar a motivação de gênero”, explica.

Um dos crimes mais recentes periciados no Rio Grande do Sul por Brochier chocou pela brutalidade. O ex-marido assassinou a mulher com 17 facadas no rosto e no pescoço, na presença dos dois filhos, de 3 e 5 anos. Em seguida, carregou o cadáver da sala para o quarto, colocou-o sobre a cama, encharcado de sangue, cercado de brinquedos. 

Depois, o assassino tomou banho, colocou a camiseta suja no cesto, levou uma criança para a casa da babá e a outra para a escola, como se nada tivesse acontecido. O criminoso tentou fugir do município, mas foi preso. A vítima queria se separar, ele não aceitava, como ocorre na maioria dos feminicídios.

Não dá para sustentar uma sociedade onde as mulheres estão sendo mortas como forma de castigo e permanecem vulneráveis

Andrea Brochier

“Esse homem quer castigar a vítima por não se comportar como a sociedade patriarcal exige de uma mulher: tem que ser fiel ao marido, não pode terminar o casamento, tem que ser a dona de casa submissa. Ele não poderia ser condenado simplesmente por homicídio”, descreve.

Em outra ocasião, a perita observou que todas as portas de uma casa, cenário de um feminicídio, estavam com marcas de arrombamento. A equipe descobriu que a vítima passava por espancamentos havia anos, trancava-se nos cômodos e o marido esmurrava as portas. Assim, ele tornou-se o principal suspeito e, posteriormente, foi considerado culpado.

DNA do crime
Os ferimentos no corpo da vítima também passam mensagens, até mesmo marcas antigas. Cicatrizes podem indicar histórico de agressões. Além de observar a localização, é preciso notar indícios de over kill, o excesso de violência. “Ele não mata com um tiro, descarrega a arma. São 17 facadas, nunca uma só. Isso tudo demonstra a carga emocional”, explica a perita.

O local do crime deve ser minuciosamente fotografado. “Observamos até os remédios que a vítima usava. Medicamento para depressão indica o sofrimento, daí investigamos o porquê”, diz.

Os objetos utilizados também não são escolhidos por acaso. “São de uso doméstico: faca, tesoura, material de jardinagem, foice. Eles usam as mãos, esganam. São símbolos do ódio”, descreve.

A mente do feminicida
Homens com esse perfil enxergam mulheres e filhos como posse. Um deles, relata Andrea, matou a mulher e a filha de uma só vez: ela estava com a bebê no colo e as duas foram atravessadas por um facão. Assassinos acham que têm pleno direito sobre a vida e a morte do outro. Não enxergam a mulher como sujeito e não foram educados para lidar com frustração.

“O homem é criado com privilégios, pode ter toda liberdade. Quando ela se comporta igual, ele acha que está perdendo privilégios. Não aceita que ela se rebele contra a opressão”, descreve a perita.

Assassinos de mulheres são homens comuns e machistas, afirma a especialista. “É o trabalhador, o pai de família. Ele acha que é o dono. Às vezes são relações de um mês ou dois de duração, não precisa de anos para isso se estabelecer”, alerta.

*“Ele não é um monstro. Ele é só um homem”. A fala e a imagem são da série policial The Fall, sobre um assassino de mulheres

O exemplo do Piauí
A delegada de polícia do Piauí Eugênia Monteiro, atual subsecretária de segurança pública do estado, criou o Núcleo Científico Investigativo de Feminicídio e Violência de Gênero. Após a criação da Lei do Feminicídio, ela desengavetou 100 inquéritos de mortes violentas de mulheres para avaliá-los novamente, dessa vez com perspectiva de gênero.

“Somente 3 assassinatos eram homicídios comuns. Todos os outros foram motivados pela condição de menosprezo ao sexo feminino”, relata. Eugênia Monteiro colocou em prática a cartilha da ONU e tornou o Piauí um dos únicos estados a seguir a prática modelo. “A linguagem policial estava na década de 1940. O que fizemos foi uma revolução”, diz.

As equipes adotaram o princípio da “única oportunidade”, usado pela polícia britânica Scotland Yard, para otimizar a análise feita na necrópsia dos cadáveres das vítimas. “Usávamos um formulário com seis perguntas, passaram a ser 26. Só temos uma chance de periciar o local, de examinar aquele corpo”.

Otávio Neto / Secretaria de Segurança Pública do Piauí
Eugênia Monteiro faz doutorado com temática voltada para a questão de gênero e investigação

Outra prática adotada foi levar em consideração os “gestos simbólicos”, termo cunhado pela antropóloga da Universidade de Brasília (UnB) Rita Segato nas investigações. O assassino imprime no corpo da vítima uma marca, que é a linguagem do feminicídio.

Cena do crime: uma mulher de 59 anos encontrada morta no chão da cozinha, golpeada com faca no pescoço. Os primeiros indícios apontavam para latrocínio.

Um “detalhe” chamava atenção, a vítima estava sem roupas e vestida em uma coleira de peitoral feita para cachorros grandes.

“Tecnicamente falando, a coleira não havia sido usada para nada, não tinha nenhuma função, mas não se deve ignorar nenhum elemento”, afirma a delegada.

Investigando, Eugênia Monteiro descobriu que a vítima era psicóloga e o assassino paciente dela. “Ele confessou ter vestido a coleira nela para sentir a submissão. Queria estabelecer vínculo, domínio. Assim caracterizamos o feminicídio”, diz.

*Imagem da série The Killing, na qual a personagem Sarah Linden investiga feminicídios

Em outro inquérito, uma jovem havia sido assassinada dentro de um carro com 20 facadas. Em seguida, o corpo foi jogado em área de prostituição e o assassino passou com o veículo por cima do cadáver e ainda arrancou os cabelos da mulher.

“A moça era cabeleireira, ele fez aquilo para atacar a independência dela, a profissão. Quis caracterizá-la como uma prostituta, pois sabe como a sociedade trata essas mulheres”, afirma a policial.

Eugênia também atuou na averiguação sobre a morte da dona de um cabaré, no interior do Piauí. O corpo da mulher foi jogado em uma lixeira. Notou-se que havia sinais de agressão sexual cometida após a morte. “O delegado, na época, caracterizou a necrofilia e ficou por isso mesmo. Não notou os sinais de crime motivado pela condição de mulher daquela vítima”, explica.

Apurando, a delegada descobriu as reais motivações do crime. A dona do cabaré mantinha relação com uma das garotas que trabalhavam na casa, pela qual um cliente se apaixonou.

“O homem então matou a dona do prostíbulo, depois fez sexo com o corpo dela e a jogou no lixo. Ele não estupraria alguém do sexo masculino, fez porque ela era mulher. A violação sexual é uma marca desses crimes”, relata.

Na visão de Eugênia, não se trata de fobia à mulher. “É uma estrutura machista que a coloca como algo que pode e deve ser dominado. Quando ela gera irritabilidade nesse domínio vem a reação. O corpo da mulher é um território apropriável”, descreve a delegada, que atualmente faz doutorado no UniCeub. A tese será sobre esses gestos simbólicos.

A policial também deu ouvidos aos relatos de sobreviventes de tentativas de feminicídios para tentar entender a dinâmica do crime e evitá-lo. Criou então o Salve Maria, um aplicativo que funciona como um botão de pânico. A mulher aperta a tecla e uma equipe vai até ela por geolocalização. O app foi criado pela própria divisão de inteligência da polícia e já é usado em outros estados.

Como mudar?
A perita Andrea Brochier relata as principais diferenças entre um homicídio comum e o feminicídio. O segundo não ocorre de repente na vida de uma mulher. “Nunca é uma agressão única. A vítima vem sofrendo violações de direitos humanos ao longo da vida, violência moral, patrimonial, sexual e psicológica.”

O combate ao feminicídio deveria começar no acolhimento das vítimas de violência. É comum que essas mulheres desenvolvam problemas psicológicos. “Quando chegam ao consultório de um psiquiatra, saem com receita de antidepressivo, mas sem nenhuma indicação de caminhos para se proteger. O acolhimento poderia iniciar-se ali”, diz.

Feminicídio é um crime totalmente evitável. Se houvesse uma rede eficiente de suporte à vítima de violência, o assassinato não ocorreria

Andrea Brochier, perita criminal

“É preciso estruturar os postos médicos legais, oferecer atendimento psicossocial, dar oportunidade para que essa mulher fale sobre a sua dor. Leva, em média, 10 anos para uma mulher quebrar esse ciclo. Ela precisa de uma busca ativa para que não ocorra o pior”, afirma Brochier.

Ela ressalta a importância da mudança cultural. “Temos de ensinar os nossos jovens o respeito. Desde pequenos, dizer que meninas têm os mesmos direitos que os homens. Há uma série de tabus e preconceitos que temos que trabalhar na nossa sociedade.”

Compartilhar notícia