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Pessoas trans estão com tratamento hormonal ameaçado em São Paulo

Após troca de gestão, médicas que atendem pacientes trans desde 2015 foram desligadas e transferidas da UBS Santa Cecília

atualizado

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Cecília Figueiredo/Sindsep
Entrada da UBS Santa Cecília, no centro de São Paulo
1 de 1 Entrada da UBS Santa Cecília, no centro de São Paulo - Foto: Cecília Figueiredo/Sindsep

São Paulo – Em 29 de janeiro, a Unidade Básica de Saúde (UBS) Dr. Humberto Pascale, no bairro de Santa Cecília, centro de São Paulo, amanheceu desfalcada. Duas médicas foram desligadas e uma outra foi transferida do quadro de funcionários do programa de hormonização para pessoas trans. Na data em questão, uma sexta-feira, se comemorava o Dia da Visibilidade Trans, em que se celebrou a conscientização sobre o respeito e os direitos dessa comunidade.

Lançado em 2015 na gestão Fernando Haddad (PT), o programa disponibiliza acompanhamento ginecológico, psicológico e endocrinológico, além de rodas de conversa e debates. Um ano mais tarde, porém, o prefeito Bruno Covas (PSDB) entregou a administração do posto ao Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). Em dezembro de 2020, uma organização social (OS) assumiu a frente da hormonioterapia, que até então resistia como um dos poucos serviços geridos pelo município.

Desde novembro passado, servidores públicos, usuários e militantes da causa trans têm lutado para que o programa fique nas mãos da prefeitura. Entretanto, o Iabas já substituiu as antigas médicas por novos servidores, sendo um deles clínico geral. O novo atendimento terceirizado já despertou críticas em menos de uma semana, com a acusação de falas transfóbicas.

“Ele [o médico] falou que eu ‘engano’ bem [em referência à aparência física]. Por que pessoas trans querem enganar? Ninguém está enganando ninguém. Tem gente que não está preparada para lidar com a nossa existência, os nossos corpos e não sabem os procedimentos mais saudáveis ou não”, disse um usuário do programa de hormonioterapia da UBS Santa Cecília, que prefere não se identificar.

Desvio de dinheiro público

Segundo fontes ouvidas pelo Metrópoles, as três médicas preferiram não se associar ao Iabas, por isso foram deslocadas para outras unidades sob administração direta. Para a coordenadora regional Centro do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), Flávia Anunciação, a troca de médicos não foi planejada. Ela acusa o secretário da pasta, Edson Aparecido, de ignorar as demandas da população trans ao não responder a pedidos de reuniões para discutir o assunto. 

De acordo com ela, a manutenção desses profissionais é importante porque o tratamento de hormonioterapia é feito na base do vínculo. Ou seja, não basta apenas tomar os hormônios: as médicas acompanham a rotina do paciente e veem se o corpo responde fisicamente bem ao processo, assim como analisam a saúde mental.

“Eu lamento, fico triste porque perdemos um serviço pioneiro e de excelência que foi substituído por algo ruim. Entram profissionais que não têm vínculo nenhum. Teremos prescritores de receitas, é isso que vai acontecer. A OS tem outra lógica de serviço. Não vai dar conta de atender mil pessoas com a devida atenção. Aqui se trata de especificidades. Isso não é privilégio, é necessidade”, critica.

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 Vínculo entre médico e paciente

Usuária do programa desde 2017, a professora Hannah Lourenço e Silva, 28, explica como funciona a relação entre paciente e médico. “Nosso programa vai até o resto da vida, até o dia em que morrermos. A gente precisa ter acompanhamento do médico que olhe por você, que te acolha, que te faça sentir segurança a partir do momento em que você opta por fazer tratamento. O objetivo do médico está em torno de nós, ele presta atendimento em cima das nossas dores e necessidades”, afirma.

Em dezembro de 2020, houve protestos na frente da UBS Santa Cecília pela permanência da administração direta no programa de hormonioterapia.

O Iabas estará no comando dessa e de outras unidades até 29 deste mês de fevereiro, pois a Prefeitura de São Paulo não renovou os contratos com a empresa, após pedido do Ministério Público. A OS é investigada por desvios de verba pública em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Após o encerramento do contrato, a prefeitura abrirá um chamamento público para instituições interessadas em assumir unidades de saúde. A reportagem entrou em contato com o Iabas, que respondeu por meio de uma nota (leia a íntegra ao fim da matéria).

Custo alto na saúde privada

O comerciante Luan Pirovani, 26, que faz uso do programa de hormonioterapia há três anos, participou de protestos pela não terceirização da UBS Santa Cecília em dezembro de 2020. À ocasião, os medicamentos hormonais estavam em falta na farmácia. “Agora, sobram”, diz. Até mesmo os remédios foram trocados nos últimos tempos. Ele recebia o Nebido, considerado o mais caro, e hoje recebe o Hormus. A diferença, além de mais de R$ 200 no preço, está nas reações que o corpo pode ter ao remédio.

Ao menos uma vez por mês ele deixa o Capão Redondo, no extremo da zona sul, onde mora, e vai até o bairro central, em um trajeto de uma hora e meia de transporte público. A prefeitura informa que 28 unidades de saúde oferecem hormonização. No entanto, Pirovani já buscou o mesmo serviço perto de sua casa, mas não encontrou.

“Eu não consigo [pagar tratamento em um hospital privado]. Só uma consulta com endocrinologista de referência custa R$ 900 e os exames não saem por menos de R$ 100. É triste porque nós, a população a trans, estamos sendo colocados como um povo sem voz, marginalizado e sem importância”, lamenta.

O Metrópoles entrou em contato com a Secretaria Municipal de Saúde. No entanto, a pasta não respondeu aos questionamentos até a publicação desta matéria.

Leia a íntegra da nota do Iabas:

“O Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS) informa que possui contrato de gestão com a Secretaria Municipal de Saúde para atendimento da Unidade Básica de Saúde Dr. Humberto Pascale, em Santa Cecília, desde 2016 e que assumiu recentemente, em dezembro de 2020, o atendimento de hormonização para pessoas transexuais e travestis na unidade.

Este atendimento é realizado por equipe multidisciplinar preparada, composta por médicos especialistas no assunto, conforme prevê o Protocolo para Atendimento de Pessoas Transexuais e Travestis no Município de São Paulo, documento da Secretaria Municipal da Saúde. A equipe atua numa abordagem integral para a saúde de pessoas transexuais e travestis, não se resumindo apenas às demandas de hormonização. Para fevereiro ainda existem 94 vagas para atendimento médico e acolhimento psicológico.

Ressaltamos ainda que toda a liderança da unidade também passou por capacitação, seguindo protocolo de atendimento da Secretaria Municipal de Saúde.

Informamos ainda que as profissionais mencionadas eram da administração direta, portanto a transferência das servidoras não foi regulada pelo IABAS”.

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