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Ainda em guerra (por José Sarney)

Nenhum conflito é bom e nenhuma paz é ruim

atualizado

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Kay Nietfeld/picture aliança via Getty Images
Participantes protestam contra a guerra na Ucrânia com uma placa com a inscrição "Paz" no memorial aos soldados soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial em frente a um tanque soviético T34
1 de 1 Participantes protestam contra a guerra na Ucrânia com uma placa com a inscrição "Paz" no memorial aos soldados soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial em frente a um tanque soviético T34 - Foto: Kay Nietfeld/picture aliança via Getty Images

Contei aqui, semana passada, um pouco da minha participação na Segunda Guerra. Que achava que, em breve, seria um soldado aliado. Escrevi a meus pais, que moravam no interior do Estado, cartas preocupadas, contando os boatos que circulavam na cidade sobre submarinos alemães nas costas, sobre ameaças de bombardeio, sobre espiões alemães e italianos agindo em São Luís e sobre o perigo dos “quinta-colunas”. Quando a guerra terminou, festejei com grande alegria, escrevi poemas sobre “a aurora de um novo dia”. (Que frustrações!)

Meu pai contou-me que em Pinheiro eles estavam “ouvindo a guerra”. Chegara um rádio importado pelo farmacêutico José Alvim, uma dessas figuras inesquecíveis nas pequenas cidades. Era a grande novidade da terra e ele o colocava na sua sala, aberta a uma multidão curiosa de amigos. Aquela geringonça falava rouco, quase inaudível, com interferências estáticas que provocavam ruídos intensos. José Alvim os justificava: “Esse barulho violento é a guerra”. E ficavam em silêncio ouvindo a guerra. Quando a interferência de estática era intensa, provocando prolongado ruído, José Alvim explicava: “É tiro de alemão”.

José Alvim me ajudou a nascer. Àquele tempo, Pinheiro tinha cerca de 1.200 casas, num total de quatro mil e poucos habitantes. Pinheiro estava no século XIX. Seus hábitos e costumes remontavam ao tempo da Colônia. Tinha apenas duas ruas: a primeira terminava na beira do campo, com uma larga curva, e se dirigia para a ponta da “península”. Ali ficava localizada a igreja, cujo padroeiro era Santo Inácio. Dizia-se ter sido construída pelos jesuítas, que tinham fazendas naquelas áreas.

Minha mãe ali chegara com oito meses de gravidez. Tinha 18 anos, e eu era o primeiro filho. Nasci cercado por duas parteiras, dona Severa e Mãe Calu, e uma cria de minha avó, Emília, que depois foi minha babá – que chamávamos carinhosamente de Debum. O parto não foi fácil. No começo da noite as contrações pararam. Meu pai, meu avô e minha avó, que também estavam presentes, decidiram chamar o único farmacêutico da cidade, José Alvim, propre­tário da Farmácia Paz, hoje a mais antiga do Estado.

José Alvim era um tipo moreno atarracado, que gostava de contar histórias. Ele mandou uma injeção de pitruitina, que foi aplicada na barriga de minha mãe, e as contrações voltaram. E assim meus olhos se abriram para o mundo.

A guerra acabou, e ele encontrou outra explicação para a má transmissão do seu rádio e a dificuldade de sintonizar as estações: “Agora não tem mais guerra, mas está chovendo na Bahia, não passa nada”. Era o resultado da paz.

Minha geração acreditou que, depois da Segunda Guerra Mundial, íamos ingressar num tempo de paz, num mundo mais justo, melhor e humano. E agora? O mundo é outro. Não podemos mais imaginar a guerra nos ruídos de rádios péssimos, mas podemos ver o clarão verdadeiro dos ataques nas telas de TV digital. Seria bem melhor se estivesse “chovendo na Bahia”.

A paz é fugidia. A guerra é persistente. Ela ficava bonita nas histórias de heroísmo, o cavaleiro Bayard defendendo sozinho uma passagem estreita contra dezenas de homens. Hoje não há heroísmo. Os instrumentos de destruição são os protagonistas da morte das vítimas civis.

Nenhum conflito é bom e nenhuma paz é ruim. Difícil é convencer os homens.

 

José Sarney ex-presidente 

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