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A minha guerra (por José Sarney

Tenho uma forte memória da II Guerra Mundial

atualizado

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Ali Jadallah/Anadolu via Getty Images
Imagem colorida mostra A fumaça sobe e aumenta em diferentes regiões de Gaza enquanto o exército israelense conduz os ataques aéreos mais intensos no 21º dia na Faixa de Gaza - Metrópoles
1 de 1 Imagem colorida mostra A fumaça sobe e aumenta em diferentes regiões de Gaza enquanto o exército israelense conduz os ataques aéreos mais intensos no 21º dia na Faixa de Gaza - Metrópoles - Foto: Ali Jadallah/Anadolu via Getty Images

Na infância estão depositadas as memórias mais marcantes que foram guardadas em nossa vida. Muitas delas são lembranças puras, simples, lúdicas, que alimentam nossa personalidade no julgamento das cores, das belezas da natureza, no carinho com os animais e em nossos primeiros sinais da força de possessão do amor. Recordo nas Memórias de Além-Túmulo, de Chateaubriand, a lembrança dos seus carneirinhos.

Mas o de que eu queria falar mesmo é que tenho uma forte memória da II Guerra Mundial. O Maranhão foi uma base aérea, e eu, aos 14 anos, morava em um pensionato, de dona Rosilda Penha, por quem tenho gratidão pela acolhida que me deu. Ali dia de domingo — ela era muito católica — almoçava o reitor do Seminário, Padre Sales, que falava inglês e por isso mesmo fora recrutado pelos americanos para celebrar missa na Base Aérea do Tirirical. Ele me levou como coroinha algumas vezes. Dos soldados ele recebia o presente de um pacote de cigarros Malboro (ele fumava), e eu, duas barras chocolate.

São Luís, tão pacata e muito longe da guerra que se processava na Europa, fora tomada de uma paixão patriótica depois que o Brasil entrara na guerra, em 1942, após o afundamento do navio Baependi, onde morreram centenas de brasileiros. É que o Brasil, que havia flertado com as potências do eixo, pressionado pela opinião pública e pelos aliados, oscilara de posição, e os alemães haviam resolvido afundar navios como pressão brutal.

Como os aviões não tinham autonomia para atravessar o Atlântico, o Brasil passou a ser uma peça-chave para a batalha no norte da África e para a invasão da Itália, que, com Alemanha e Japão, formava o Eixo. Assim o Brasil permitiu bases americanas em Macapá, Belém, São Luís, Fortaleza e Natal para que os aviões, do Rio Grande do Norte, atravessassem o Atlântico, com um pouso na Ilha do Sal. Aqui desembarcavam armas e munições, fazendo uma rota alternativa para a reunião de Teerã entre o Stalin, Roosevelt, Churchill, entre outras de alto nível.

São Luís, de repente, encheu-se de soldados americanos, com suas boinas, que montaram um escritório no centro da cidade, o USO – United States Office.

Foi uma revolução. Aqueles homens loiros, altos, bonitos, apaixonavam as moças de tal modo que um colega meu, Chafir, ao responder em nossa classe àquela pergunta clássica: “O que você quer ser?”, ele respondeu: “Americano.” A professora de inglês namorava o chefe militar americano.

A cidade também se habituou aos muitos voos de dirigíveis, que eram chamados de zepelins, encarregados de patrulhar o Atlântico e afundar submarinos com bombas de profundidade.

A zona do meretrício que, naquele tempo, vivia um momento áureo, era dominada pelas tropas aliadas. Como se, nos Estados Unidos, não existisse mais essa prática dos prostíbulos.

A guerra provocou, através de propaganda, uma enxurrada de retratos do general George Patton e de muitos outros generais, cujos endeusamento foi feito no mundo inteiro, principalmente nas cidades onde estavam localizadas as bases para criar o sentimento de apoio aos aliados.

Uma tragédia que chocou a cidade aconteceu com um jornaleiro italiano que tinha uma banca de jornal na Praça João Lisboa, centro fofoqueiro da cidade, assassinado pelas costas por um fanático que passara a odiar alemães, italianos e japoneses.

Tivemos blecaute para que os submarinos não detectassem a cidade e muitas passeatas exaltando o sentimento patriótico. Criou-se mesmo, nas Forças Armadas, uma pré-serviço militar obrigatório — eu guardo até hoje, entre os meus papéis velhos, este de menino alistado para lutar contra as forças do nazismo quando alcançasse a idade legal.

Outro dia, revendo papéis velhos, encontrei, entre as cartas que fiz para minha mãe, uma em que descrevia o meu medo da guerra, as atrocidades que estavam sendo cometidas na Europa e o meu medo de que essas batalhas chegassem ao Brasil.

“Minha mãe, apegue-se ao manto de Nossa Senhora, reze para o senhor São Bento e Santo Inácio para que essa guerra não chegue a São Luís, nem a Pinheiro, nem a São Bento. 

Eu estou na Congregação Mariana rezando por meus colegas um terço todo dia para que acabe a guerra e chegue a paz entre os homens, como pediu Jesus. 

Diga à Debun (nome da minha ama) que reze por mim, me tirando o medo dessas almas que mortas na guerra podem vir para cá.” 

Tive vontade de rasgar essa carta, mas era tão bonita, tão cheia de fé e religiosidade que a guardei entre os papéis que guardo da minha querida e protetora Irmã Dulce.

Nossa guerra era uma guerra pura, sem bala e sem internet, sem televisão e apenas com a Rádio Nacional dando o boletim noturno de como iam as coisas no front ocidental.

Hoje a gente assiste à guerra em tempo real: a brutalidade com que ela se manifesta, a quantidade de vidas que ceifa, de lares que destrói, de aleijados que cria, de mortos que tiveram o sonho de viver interrompido.

Agora não tolero mais nem olhar jornais televisivos, revoltado com a brutalidade nos conflitos que envolvem países divididos por ódio cada vez mais profundo.

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