metropoles.com

A distância entre eles (por Mirian Guaraciaba)

Só um governo comprometido em combater a carestia e a ignorância pode tirar das ruas crianças, jovens, sem teto, abandonados à própria sorte

atualizado

Compartilhar notícia

Hugo Barreto/Metrópoles
A pandemia da covid-19 aumento dos índices de pobreza em todo o DF
1 de 1 A pandemia da covid-19 aumento dos índices de pobreza em todo o DF - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Num restaurante tradicional de Brasilia, as crianças riam divertidas. Pediam batatas fritas, sucos. Depois, o jantar, e, ao final, a sobremesa preferida. Nada lhes era negado. Os adultos, distraídos entre uma taça de vinho e uma dose de uísque, monitoravam o grupo ruidoso. Em nome de um pretenso sossego, permitiam até o desperdício.

De repente, o toque inesperado no ombro. O cumprimento sorridente e a realidade crua da desigualdade social. O contraste, a distância, surgiram implacáveis na forma daquele menino alto, magro, sorridente. Estava ali Kauã, que, muitas vezes, quando criança, vinha com sua mãe para o trabalho, e frequentava com os meus netos aquela mesa de restaurante.

Kauã oferecia rosas vermelhas, de mesa em mesa. Entrara no universo inclemente, perverso. Mais velho que os meninos, a vida o jogara na noite, não para se divertir. Para ganhar uns trocados.

Um soco no estomago.

Por sorte, aquele menino bonito não abandonara a escola. Não perdera o sorriso. Trabalha nos finais de semana. Continua parceiro da mãe, quer ajudá-la, e ter seu próprio dinheiro. O ângulo positivo da história não consola. Dói ainda mais. Adolescência perdida.Tantos passeios fizera com meus netos. Tamanha dissonância entre o que vive hoje Kauã e o que vivem os filhos do privilégio.

Há o que fazer por ele. A indicação de trabalho diurno, mais segurança para um menino de 16 anos. Há o que fazer sempre. E os outros Kauãs? Pequenos e grandes, crianças que nos abordam na noite? O que fazer por eles?

Fundamental não permitir que continuem invisíveis.

Kauã não é indigente. Mas a miséria assola o País, exige medidas urgentes. Levantamentos da FGV Social indicam que quase 28 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia de Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões brasileiros.

É vital um governo voltado para pobres e desvalidos É obrigatório e urgente que os miseráveis voltem a ter comida na mesa, e as crianças possam sonhar em viver e estudar à luz do dia.

Passa da hora de nos posicionarmos. Só um governo comprometido em combater a carestia e a ignorância poderá tirar das ruas crianças, jovens, sem teto, abandonados à própria sorte. Brasileiros abandonados que se multiplicam tomando calçadas de todas as cidades, morrendo de fome, de frio, de medo.

O Brasil pede socorro. É remota a possibilidade de reeleição de Bolsonaro, mas, acreditemos, não é impossível. Ou reagimos agora ou não teremos tempo de impedir um novo mandato ruinoso, catastrófico, devastador, multiplicando Kauãs cada vez mais sem esperança.

PS: A distância entre eles me remeteu a Thrity Umrigar, jornalista, professora e romancista de origem indiano-americana, autora, entre outros, de “A distância entre nós”. Na complexidade da Índia dividida pela extrema pobreza e a riqueza visível, Umrigar trata desses dois mundos, observando duas solidões – duas mulheres, Bhima, analfabeta, hindu de casta mais inferior, e sua patroa, Sera, viúva aristocrática parsi. Elas compartilham anos de intimidade. Todas as manhãs, Bhima deixa seu casebre de barro na favela miserável onde vive, para cozinhar e limpar a casa de Sera. Os diálogos valem o livro de Umrigar. Livro para não esquecer.

PS1: Não há mocinhos na Guerra da Rússia contra Ucrânia. A humanidade pagará a conta da insana e letal disputa entre Rússia, Estados Unidos, OTAN, e o resto do mundo.

Mirian Guaraciaba é jornalista

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comBlog do Noblat

Você quer ficar por dentro da coluna Blog do Noblat e receber notificações em tempo real?