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Uma ou duas palavrinhas sobre videogames

A indústria de jogos eletrônicos é uma das mais importantes de hoje em dia, sendo consumida por crianças e adultos

atualizado

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Quando se estuda uma forma de arte, expressão ou comunicação, é comum que a clássica pergunta, ainda que um tanto anacrônica, venha em mente: qual o seu componente específico, ou seja, aquilo que a define enquanto tal? Podemos perguntar se a cor seria o específico da pintura, ou a palavra o da literatura. No cinema, a coisa se complica: é a imagem? É o movimento? O que seria aquilo que, nos quadrinhos, os faz serem especificamente… quadrinhos? Seria a narrativa, os quadros, as cores, os balões de fala? E se essas coisas todas pudessem também ser encontradas em outras formas de expressão, o que restaria de “essencial” em cada uma delas? 

Essa discussão é antiga. Hegel procurava uma essência para a música (seria a imitação do espírito). Kandinsky posicionava as artes visuais entre a forma e a cor. O psicólogo e teórico da arte Rudolph Arnheim achava que o que fazia do cinema uma arte eram justamente suas “imperfeições” artificiais: o enquadramento, a ausência de cores (eles escreveu nos anos 1930), os truques de montagem, etc.

Na discussão contemporânea, essas ideias caducaram. No mundo fragmentário e volúvel do pensamento pós-moderno, as coisas não são mais específicas (na verdade, flutuam numa colcha de retalhos de acontecimentos, experiências e símbolos) e nem possuem essência alguma. Como poderiam, não é mesmo?

O que faz, de um videogame, um videogame?

 

A forma de expressão contemporânea mais importante que existe é o videogame. Sua indústria é maior que a dos filmes, seus métodos e logística têm sidos adotados nos meios empresarial e educacional, e a vasta maioria das crianças e adolescentes (além de muitos adultos) de hoje em dia gostariam apenas de passar o resto da vida jogando, infinitamente. Campeonatos de games lotam estádios, criam superestrelas milionárias e são transmitidos por canais de esportes. Youtubers de gameplay – basicamente um gênero de vlogging que consiste em narrar a si mesmo jogando pelo vídeo – estão entre os mais populares e acumulam milhões de seguidores.

Eu não me considero um sujeito particularmente próximo do mundo dos games. Claro, minha infância e adolescência nos anos 1980 e 1990 fez com que me deparasse inevitavelmente com consoles clássicos, desde o Atari até o Nintendo 64. Quebrei controles jogando Decatlon e também os perdi atirando-os contra a parede após derrotas milimétricas no Mario Kart. Gastei milhares de horas da minha vida jogando games, mas não sou um gamer.

Uma coisa que se precisa para ser gamer nos dias de hoje (e de sempre) é ter tempo, muito tempo. O videogame é uma mídia profundamente imersiva, e se perder na temporalidade, num tipo de transe ou fluxo extático, é uma de suas características mais intrínsecas. Não tenho tanto tempo, mas tenho muita curiosidade.

Decatlhon, o destruidor de controles

 

Mario Kart clássico

 

Daí pululou em minha cabeça, especialmente depois de ter recentemente adquirido um videogame moderno: qual o componente específico desta forma de expressão e arte? O que faz, de um videogame, um videogame e nada mais? Como disse, a pergunta é anacrônica, mas gostaria de usá-la como recurso retórico.

O teórico dos games Jesus de Paula Assis, em seu livro A Arte do Videogame, traz algumas elucidações: videogames são espécies de brincadeiras (com contabilização de pontos) em que importa, para a experiência de jogar, uma curva de aprendizado das regras, um certo “mapeamento natural” de suas funções, para se definir a modalidade de jogo. Esse mapeamento será modulado por várias coisas: o gênero do jogo, a inteligência do programa, a interatividade, o fator de imersão, a interface, etc. No final, para ele, diferentes experiências convergem para as narrativas, cada vez mais sofisticadas, que os transformam, enfim, em arte.

Porém, para Assis, um fator se sobrepõe aos outros, e é o que quero destacar: aquilo que ele chama de gameplay ou “jogabilidade”. Desta não se trata do gênero de vlogging mencionado acima, e, sim, um “conjunto de táticas que tornam interessante e divertida a experiência de jogar”. Trocando em miúdos, seria um balanço entre as regras fixas e a flexibilidade de atuação no jogo, um tênue equilíbrio.

Um game não pode ser um mundo excessivamente aberto e sem regras, pois se torna confuso e entediante. Porém, ele não pode ser também limitado demais, sem brechas de intervenção para o jogador, senão a experiência se torna frustrante. A programação do gameplay, tão complexa quanto se pode imaginar, é o que define a adesão do jogador ao jogo, seu grau de imersão e a capacidade de se sentir satisfeito interagindo com esse programa.

Muitos críticos dos games apontam que eles jamais serão uma arte realmente narrativa porque as limitações impostas pelo gameplay impedem que eles se livrem da dependência do próprio jogador. Podem argumentar que um jogo de videogame jamais terá a profundidade de abordagem que um filme como Através do Espelho (Ingmar Bergman, 1961) faz sobre a esquizofrenia, por exemplo. De fato. Porém, minha opinião é a de que – baseando-me neste princípio do específico de cada mídia – eles estão fazendo a pergunta errada. Focar o princípio dos games em sua capacidade narrativa, como parece ser moda agora, é seguir por um caminho equivocado.

Bergman: no gameplay, no gain

 

Bergman pode ser cinematicamente perfeito (alguém duvida?), mas, para ser melhor que Shadow of the Colossus, por exemplo, ele precisaria ter gameplay. Um jogo não deve e nem pode ser definido por sua protonarratividade. Ela é necessariamente acessória à sua jogabilidade. É por isso que, para finalizar, farei a análise de dois jogos muitos distintos que seguem caminhos opostos no mundos dos games, mas que se complementam no amplo espectro do que os videogames podem ser.

Super Mario Odyssey x Nidhogg
Todos conhecem a franquia Super Mario. É o game mais famoso do mundo. Sua última versão em estilo plataforma (em 3D), de 2017, saiu para o Nintendo Switch, e acumulou prêmios com seus ambientes profundamente imersivos, capacidade de hibridização com outros estilos de jogo, e detalhismo gráfico inspirador.

Mario anda na areia ou na neve e seus pés deixam pegadas com ínfimos grãos voando pelos ares, enquanto, para quem segura o controle, a sensação é a de estar enfrentando cada dificuldade da caminhada como se estivéssemos nos sapatos do famoso e carismático personagem.

Mario Odyssey representa a epítome do jogos single player modernos: seu mundo é relativamente aberto e podemos ficar horas se perdendo nas paisagens gráficas exóticas, coloridas, cada uma como se fosse um universo à parte (de fato, são reinos pensados intrinsecamente, obedecendo apenas à variabilidade dos padrões do gameplay).

Não é um jogo muito difícil, e a resistência do programa permite que se jogue relaxado, com paciência, como se nos deixasse num estágio de alumbramento provocado pelo seu aspecto mais alienígena e reconfortante. Não chega a entediar. Seria mais um efeito narcotizante provocado pela simulação e imersão, ajudado pela inegável beleza do design do jogo.

Odyssey nos deixa ciente de uma longa história (algo como Bowser ter sequestrado vários itens importantes para realizar um forçado casamento com a princesa Peach), que ajuda a costurar a experiência mais propriamente psicodélica, e a duração impermanente e solitária do jogo faz da fuga narrativa um duplo colorido, intenso e inevitável da própria vida.

Por um lado, o jogador erige os próprios caminhos do herói numa fantasia de ócio desejável que emula sentido por meio da continuidade da trama. Por outro, o jogo avança e avança, num processo contínuo de jogar pelo próprio jogar.

Super Mario Odyssey

 

Felizmente, a experiência cheia de reentrâncias de Mario Odyssey (temos acesso até ao guia turístico dos reinos) não é a única possível nos jogos atuais. Um amigo recentemente me apresentou Nidhogg, lançado pela Messhof em 2014 e que serve para diversas plataformas. Originalmente, era um jogo indie, ou seja, produzido por programadores autônomos fora da indústria, que depois os vendem às marcas e sites mais famosos.

Aqui, fica evidente um outro tipo de cultura do videogame: retrô, autorreferencial, adepta da baixa resolução gráfica e que procura retomar o princípio do gameplay às suas origens no gênero arcade, fora do propósito narrativo.

Nidhogg

 

Niddhogg é um multiplayer que simula um velho 8 bit, e é ao mesmo tempo um jogo de luta. Os jogadores controlam espadachins cuja única missão é ir atravessando a tela oposta, diante do adversário, até chegar ao final. As ações são hiper restritas, revelando uma íngreme curva de aprendizado: cada um pode estocar em poucas direções, agachar, correr e arremessar a espada.

O incrível é que, dentro dessa limitada configuração, inúmeras estratégias são possíveis, deixando o jogo à flor da pele, de uma intensidade que é exatamente oposta ao gigante mastodôntico que é Super Mario Odyssey. É como se, limando a narrativa e potencializando o gameplay às suas estruturas mais elementares, o jogo indie desse uma lição na ambição desmedida, morosa e dependente demais da computação gráfica, dos jogos das grandes marcas. É também um apelo ao jogar pelo jogar.

Esta simples dicotomia marca tanto o espectro de atuação quanto as limitações impostas pelo gameplay. De um jogo single player cheios de rococós gráficos e reentrâncias narrativas, a um emulador de Atari multiplayer cuja duração pode ser de apenas alguns segundos, o propósito é o mesmo: abrir espaço para a jogabilidade. Se ainda pudermos falar em específico, é isso que une essas experiências tão distintas. Como se diz no futebol: “O jogo é jogado”. Ou, como diz o teórico dos games Ian Bogost (mirando McLuhan): “O processo é a mensagem”.

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