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Notas do Underground e Cesariana: HQ brasiliense atinge a maturidade

Dois lançamentos ajudam a enquadrar personagens que traduzem, ainda mais para um cotidiano local, as HQs brasilienses

atualizado

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1 de 1 capa_ZIP_notas_do_underground - Foto: Divulgação

O ano de 2019 tem se mostrado promissor para o quadrinho brasiliense. Recentemente, vimos surgir Mapinguari, de Gabriel Góes e André Miranda, um belo romance gráfico (publicado pela WWF, na real, no fim de 2018) que mistura política, relações familiares complicadas, corrupção e mitologia num ambiente amazônico. Também esperamos pelos prometidos novos lançamentos de Renata Rinaldi e Lucas Gehre, além de termos acompanhado a consolidação de vários eventos que envolvem quadrinhos na capital, como a Feira Dente, o Motim, os eventos no Espaço Pop da UnB, entre outras iniciativas.

Dois lançamentos ajudam a enquadrar (ops… trocadilho) personagens que traduzem, ainda mais, para um cotidiano local, as HQs brasilienses. Notas do Underground, de Pedro D’Apremont (pela Pé de Cabra), e Cesariana, de Lucas Marques (pela Aerolito) são significativos não apenas porque dialogam, como “nativos”, com a cultura daqui, mas também porque evidenciam um amadurecimento de conceitos e possibilidades de abordagem, deixando o legado zinesco para trás. É o nascimento da assinatura autoral destes dois caras, ainda que estes quadrinhos (e suas trajetórias) sejam bastante distintos.

Pedro e Lucas fazem parte do que chamo de “Classe de 2013”, uma cena de quadrinhos que se formou por aqui como herdeira da “geração Samba”, e que também abriu as portas para LoveLove6, Daniel Lopes, Diana Salu, Renata Rinaldi, Taís Koshino, etc. Acompanhei de perto os trabalhos destes quadrinistas desde então, e, pode-se dizer, mesmo com a hercúlea dificuldade que é manter uma carreira nessa área no Brasil, que já existe uma história trilhada e conquistada por esta geração, ainda que haja divergências, ainda que muito ainda precise ser construído.

Lucas Marques e Pedro D’Apremont, de certa forma, representam arquétipos opostos neste ambiente. O primeiro, editor da revista mix Aerolito e autor de diversas histórias em zines, webcomics e animações, é um sujeito acanhado, honesto e ordeiro, enquanto o segundo é autoparódico, ácido e por vezes cínico, dono de um senso de humor, digamos, “de nicho”, e de uma enorme erudição em cultura underground. Publicou o clássico zine Lo-Fi e a ótima Anexia é um Paraíso (junto com Gabriel Góes).

De certa forma, estas personalidade contrastantes se refletem nos quadrinhos, ambos muito bons em suas ambições. Vale uma averiguada mais detalhada.

Notas do Underground: Seinfeld para metaleiros

Pedro D’Apremont tem a grande qualidade de não precisar justificar as referências que faz em seus quadrinhos (como se o leitor fosse um noob qualquer; ou, se for, que se f*da). Ele entende que escrever sobre subculturas tem de ser algo como jogar um nerd virjão diretamente num mosh de um show de punk rock: o sujeito tem de descobrir tudo, na hora, com tudo de indesejável que está incluído. Além disso, ele sabe que, para algo ser realmente subversivo, é preciso não fazer concessões: você tem de zoar as coisas que ama, senão não vale. Para ele, bandas de black metal, death metal e grindcore fazem parte de sua “educação sentimental”, mas espertamente não se priva de expor algo do ridículo e do fascinante desses universos.

O underground de D’Apremont pode ser um bar fuleiro no setor de oficinas, com seu dono tiozão asqueroso fã de Stones. Pode ser um bando de neonazis jogando Dungeons and Dragons, ou uns metaleiros vivendo um dia de hipster pau mole, ou até uma banda de satanistas que se perde na floresta. Tudo isso associado à ingestão compulsiva de birita extremamente vagabunda, drogas estragadas e violência urbana pé inchada.

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É isso e tosqueiras semelhantes que você verá neste compilado de histórias curtas que ele publicou pela Vice americana entre 2017 e 2018. O estilo de Daprê é perfeitamente característico, uma coisa entre o realista e o caricatural (por vezes até resvalando no mangá), imediatamente reconhecível. Apesar de os temas serem seriamente podreira, seus desenhos são muito limpos, como se os quadrinhos do Archie fossem acometidos por uma diarreia violenta.

Percebe-se que D’Apremont é um leitor voraz de todo tipo de quadrinho, mas suas influências principais estão em americanos descolados (antes “underground”) tipo Charles Burns e Crumb. O que mais impressiona, no entanto, não é de onde ele bebe, mas sim a possibilidade da síntese de um “pensamento” dapremoniano por meio destas histórias aleatórias, desconexas, autistas e simpáticas. Em grande parte autoparódia, Notas do Underground coloca o próprio autor como voyeur abismado do mundo bagaceira ao seu redor – tipo um Aires de Machado de Assis, só que adaptado ao mundo de shows toscos dos quais ninguém se lembra. Em poucas letras e páginas, temos acesso a uma observação aguda de coisas extremamente desimportantes, a tudo sobre nada, esboçando um Seinfeld dos metaleiros.

Cesariana: o parto de um quadrinista

Lucas Marques levou seis anos entre o início e o fim do projeto para o romance gráfico Cesariana. Publicada inicialmente como zine, esta longa história de formação (autobiográfica) teve trajetória tortuosa, padeceu diante de um Catarse, quase não vê a luz do dia. Porém, quem lê a apaixonante história contada no quadrinho, descobre a perseverança do seu autor: Lucas foi Mórmon (famoso grupo de missionários cristãos, popular nos EUA), e a tensão dramática ocorre justamente em dois polos – sua profunda crise existencial/religiosa; e as dificuldades “vida real” de um adolescente vivendo na periferia de Brasília, com amigos cujas vidas foram destroçadas por famílias disfuncionais.

Ainda que Cesariana não tenha sido o primeiro trabalho em quadrinhos que Lucas terminou, foi o primeiro que ele começou. Dadas estas circunstâncias, podemos perdoar a oscilação na qualidade da arte (diferente do estilo mangá que ele adotou hoje), que começa ainda dura, em fase de aprendizado, e termina mais amena, menos grosseira e mais minimalista. Seu estilo é um pouco derivativo de Daniel Clowes, mesmo ele utilizando recursos de linguagem muito interessantes, como a profundidade de campo e aspectos sonoros para compor o ambiente. De certa maneira, a arte do quadrinho parece acompanhar a maturidade espiritual do autor, tornando-se mais sofisticada e serena nos capítulos finais.

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Se a arte não compromete, vale ressaltar a enorme qualidade do roteiro e do texto, que em nada devem ao romance gráfico brasileiro autobiográfico contemporâneo. Lucas atravessa temas diversos com letreiros e letreiros de condição filosófica para momentos de introspecção, comentário social, drama familiar, etc. Há sentido e montagem na narração, e nada parece ter sido colocado fora do lugar, ajudando a adensar as tocantes motivações dos personagens.

A passagem à vida adulta, operada nas experiências que abriram a cabeça de seu alter ego para se libertar do dogma religioso, é a trama mais comovente, e ainda mais se inserida num cenário das cidades satélites (Taguatinga, Guará) – o que cria um forte contraste entre o ideário metafísico do personagem e suas dificuldades típicas da urbanidade. Cesariana, ainda que com suas inevitáveis imperfeições, tem a beleza dramática dos partos difíceis, nessa franca abertura da alma do quadrinista para o mundo das HQs brasilienses.

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