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Em busca de uma pátria: conheça a história de Maha e Souad

As irmãs viveram 30 anos sem fazer parte de uma nação e seguem em busca do processo de naturalização

atualizado

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Ilustração de Stela Woo/Metrópoles
Maha-apátrida
1 de 1 Maha-apátrida - Foto: Ilustração de Stela Woo/Metrópoles

Ao nascer, um indivíduo é registrado e obtém documentos simples de identificação. Com isso, durante a vida, consegue ter acesso a direitos fundamentais e exercer a própria cidadania. No entanto, algumas pessoas não fazem parte de nenhum país. São invisíveis para a lei e chamados de apátridas.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 10 milhões de pessoas no mundo vivem nessa situação. É o caso das irmãs Souad e Maha Mamo, que, em junho, entraram para a história como as primeiras a terem a condição de apátridas reconhecida pelo governo brasileiro.

“É um sonho que será realizado após três décadas. Apatridia não é uma questão política nem religiosa, é humanitária”, desabafa Maha, que fará a prova de proficiência em português no início de outubro, a última etapa para conseguir ser naturalizada.

Desde cedo, as irmãs enfrentaram desafios. Elas nasceram no Líbano, mas, por questões religiosas, não foram registradas no local. O casamento da mãe muçulmana com o pai cristão não tinha reconhecimento legal. Muito menos os três filhos decorrentes da união.

“Sempre sentia que tinha algo errado, que eu era menor do que as outras pessoas. Minha vida sempre foi acordar e pensar: ‘E hoje? Será que vou sobreviver?’”, desabafa Maha. O medo de viver escondida era constante. “Se a polícia me parasse, seria presa, porque não tinha documentos. Então, eles poderiam me considerar terrorista”, lamenta.

Após enviar pedido de acolhimento a embaixadas e governantes de mais de 190 países durante anos, as duas mulheres chegaram ao Brasil em 2014 junto com o irmão mais novo, Edward.

Ao pedir abrigo na embaixada brasileira em Beirute, a solicitação foi negada. O governo do Brasil decidiu acolher sírios que fugiam da guerra e emitiu um passaporte provisório para também amparar os irmãos como refugiados. A família pegou a autorização e teve 48 horas para chegar aqui por conta própria, sem orientação alguma.

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Maha e Souad foram as primeiras a serem declaradas apátridas na história do Brasil

 

Quando chegaram, não sabiam nada a respeito do país. Por meio do Facebook, Maha encontrou uma família em Minas Gerais que os abrigou. Mesmo com o mestrado, a administradora não conseguiu emprego e, no começo, fazia bico entregando panfletos. Depois de dois anos em terras brasileiras, conseguiu CPF, Carteira de Trabalho e Registro Nacional de Estrangeiro.

Um mês depois de terem conseguido os documentos brasileiros, o irmão foi vítima de uma tentativa de assalto em Belo Horizonte. Edward, ou Ed – como era carinhosamente chamado –, foi baleado e morreu aos 26 anos.

“Nesse tempo em que morou aqui, ele pôde viver como ser humano”, relembra Maha. Apesar da dor, as irmãs tentam usar a tragédia como força para seguir em frente e, finalmente, conquistar uma nacionalidade.

As jovens irmãs, atualmente, moram em Belo Horizonte e, costumeiramente, vêm a Brasília para receber as questões voltadas ao processo de naturalização.


Infância
Ainda crianças, as duas irmãs precisavam usar documentos emprestados de amigos para atividades básicas, como consultar em um hospital. Em casos mais urgentes, viam-se obrigadas a pagar mais pelo atendimento, para proteger a identidade renegada. Em meio a uma guerra civil, estudaram em uma escola armênia na qual foram aceitas por pura solidariedade da direção.

Apaixonada por esporte, Maha era líder do time de basquete da escola e tinha ótimas notas, mas, mesmo assim, não era possível competir. “Quando eu tinha 16 anos, olheiros foram procurar talentos na escola e me escolheram para ser profissional, mas não consegui jogar porque não tinha documento. Foi a maior frustração da minha vida”, recorda.

A jovem, então, passou a compreender sua condição de apátrida e decidiu questionar os pais. A reação não foi positiva: “Nós brigávamos. Depois, entendi que, dentro de casa, não poderia falar sobre esse assunto, era um tabu”, conta Maha.

Maha inscreveu-se em todas as universidades do Líbano, mas apenas uma a aceitou. Então, ela precisou deixar para trás o sonho de cursar medicina. A única opção viável era business and computing – um diploma duplo oferecido por instituições particulares.

Para custear os estudos, precisava ter recursos próprios e, novamente, viu-se diante de novo desafio. Com muito esforço, conseguiu emprego, porém sempre trabalhando mais e ganhando menos. Quando a fiscalização chegava, tinha de se esconder. Hoje, após os obstáculos, Maha tem mestrado em administração e fala cinco idiomas.

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Maha Mamo com o Ministro da Justiça, Torquato Jardim, durante evento de abertura da Semana Nacional do Refugiado

 

Caminho para a cidadania
Antes da nova Lei de Migração, o Brasil recebia apátridas como refugiados. A norma, em vigor desde novembro de 2017, substituiu o Estatuto do Estrangeiro (criado ainda durante a ditadura militar).

Para os apátridas, a lei é um marco. “Garante a essas pessoas proteção internacional em linha com as duas convenções sobre apatridia das quais o Brasil é parte”, explica Gabriela Ferraz, idealizadora do projeto Vidas Refugiadas.

Além do estigma de não pertencer a nenhum país, a apatridia pode provocar vulnerabilidade no mercado de trabalho e na vida cotidiana. Isso pode gerar situações de frustração ao ter uma gama de direitos sociais, econômicos, civis e políticos talhados

Leonardo Cavalcanti, coordenador do Observatório das Migrações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB)

A última etapa rumo à nacionalidade brasileira é o teste de português, que será feito no início de outubro. Depois, caso aprovadas, a previsão é de que as irmãs consigam rapidamente a naturalização.

Arquivo pessoal
A campanha I Belong foi lançada pela ONU para garantir a proteção de apátridas

 

I Belong
Criada em 2014 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), a campanha I Belong pretende acabar com a apatridia no mundo em 10 anos. A iniciativa é apoiada pelo Plano de Ação Global.

Os avanços chegam aos poucos. Em 2016, por exemplo, mais de 60 mil apátridas que viviam em 31 países conquistaram nacionalidade. De acordo com a ONU, foram registradas diminuições significativas de casos na Costa do Marfim, Rússia, Tailândia, nas Filipinas, no Quirguistão e Tajiquistão.

Com base no último relatório do Acnur, divulgado em 2017, mais de 75% dos apátridas pertencem a minorias étnicas. Entre esses grupos, estão os karanas, em Madagascar; os pembas; os makondes, no Quênia; e os romas, da Macedônia.

Para o coordenador do Observatório das Migrações Internacionais da UnB, as mudanças na legislação brasileira possibilitam a superação de uma série de barreiras burocráticas aos imigrantes. “Contribui de forma decisiva a consolidar a imigração como um ativo para o desenvolvimento do país, não somente do ponto de vista econômico mas também cultural, social e político”, pontua Leonardo Cavalcanti.

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