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Humor ou barbárie? A segunda morte do pequeno Aylan Kurdi

Charge do “Charlie Hebdo”, semanário marcado pela tragédia da intolerância, reforça a discussão que, sem a ética, a arte e o humor alinham-se contra os valores humanos

atualizado

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Doze imigrantes sírios, incluindo oito crianças, morrem afogados na Turquia
1 de 1 Doze imigrantes sírios, incluindo oito crianças, morrem afogados na Turquia - Foto: null

Há pouco mais de um ano, o mundo se abraçou numa corrente de solidariedade aos jornalistas do Charlie Hebdo. A matança, em nome de críticas a pilares do islamismo, custou vidas e abalou a imunidade da nação francesa. Num instante, a humanidade comoveu-se, formou uma corrente e se fez “Je suis Charlie”. Naquele momento de torpor, pouco se discutiu sobre os limites éticos do humor e, por que não dizer, da arte.

Elya/Creative Commons

Agora, a questão volta à tona em via revessa. A última edição do semanário satírico traz uma charge que nos põe com o sentimento de ponta-cabeça. A vida do menino Aylan Kurdi, símbolo da tragédia da imigração síria, é alvo de uma leitura xenófoba do cartunista Riss, em referência aos abusos sexuais sofridos por dezenas de mulheres alemãs na virada do ano, em Colônia, por imigrantes.

“O que o pequeno Aylan seria se ele se tornasse adulto? Apalpador de bundas na Alemanha”

 

Estilhaços letais
A sensação de horror que nos invade ao se deparar com a charge do Charlie Hebdo equivale a de um homem-bomba, que de forma insana aciona o gatilho e lança os estilhaços letais a toda sorte. Um deles atingiu a família de Aylan. A dor do pai, Abdullah Kurdi, foi expressa em um comunicado ao qual se refere à criação de Riss como “desumana e imoral”.

Tão mau quanto as ações dos criminosos de guerra e terroristas

Abdullah Kurdi

Viver com o outro
A charge do Charlie Hebdo traz em si a tentativa ultranacionalista de atingir a Europa que abriga e se esforça para coexistir com as diferenças culturais dos imigrantes, vindos de terras onde o direito das mulheres estava em outra ordem. Os governos sabem que será preciso um tempo para adequar culturalmente e economicamente os fluxos migratórios.

Depois do ocorrido em Colônia, a Alemanha correu para elaborar um projeto adequado de deportação para aqueles que cometem crimes sexuais, enquanto alguns países, como a Noruega e a Bélgica, desenvolvem programas para educar os imigrantes às realidades judicial e cultural da Europa, sobretudo, no âmbito das minorias.

Humor sem freios
No centro dessa questão, está um debate filosófico urgente: o humor, como uma expressão artística, tem limites éticos? Não temos enfrentado esse debate com profundidade.

A bandeira que se levanta é a do politicamente correto, uma estratégia distorcida, claustrofóbica e pragmática de encarar essa questão. É superficial e imposta. É de fora para dentro do processo de criação.

Num processo criativo, às vezes, é necessário se ter um elemento, julgado imoral por muitos, dentro de uma obra, para que, na tensão e no atrito, as discussões se aprofundem e tornem-se capazes de levar o espectador à reflexão. Uma personagem negra que alisa o cabelo pode ser uma chave potente para se discutir a perda de identidade dentro de uma criação que eticamente se coloca contra essa condição.

Politicamente correto é anestesia
Ao usar o politicamente correto como escudo, governo e sociedade civil organizada, por vezes, eliminam esses conflitos, tornando a política do eufemismo como uma espécie de anestesia que alivia dores, mas não enfrenta o mal.

Como provocador do que permanece instituído, o artista não deve temer os pilares da moral e os bons costumes. No entanto, precisa estar intimamente ligado aos questionamentos éticos, à reflexão individual sobre esse conjunto de valores.

O criador que desconhece, por exemplo, a preciosidade da vida como bem inviolável, impõe-se como implacável em seu desejo de ser. Quer fazer rir por rir… Doa a quem doer.

Poder ao chão
Ao criador que associa arte e ética, cabe tecer uma obra capaz de levar os humanos a saltarem de um “vazio de pensamento” para a produção de massa crítica. É possível fazer humor assim, sem perder a veia voraz e satírica. Sagaz e hábil em puxar os tapetes e levar ao chão as hordas da moral e dos bons costumes que mantêm o poder. De Aristófanes a Luís Fernando Veríssimo, rimos e rompemos estigmas.

O que o Charlie Hebdo fez não foi humor. Foi barbárie! A charge de Riss é a segunda morte do menino Aylan. E nem por isso estamos aqui arrependidos de termos chorado pelos cartunistas mortos em janeiro de 2015.

A nós, cabe, agora, sentir a dor, a indignação e a vontade de refletir, como fez a rainha da Jordânia, Rania, nas redes sociais ao postar uma charge do caricaturista jordaniano Osama Hajjaj. Nessa versão, se o pequeno sírio tivesse sobrevivido, poderia ter se tornado um homem de futuro e afetuoso. É didática, mas é profundamente ética com a memória de Aylan Kurdi.

 

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