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Menos de 6% das pesquisas clínicas no Brasil são voltadas ao câncer

Segundo banco de dados global, apenas uma pequena parte das pesquisas no país são para neoplasias. Arboviroses têm apenas 0,4%

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pesquisa clinica
1 de 1 pesquisa clinica - Foto: iStock

Nem zika, nem dengue, nem febre amarela. A maior parte das pesquisas clínicas em andamento hoje no Brasil debruça-se sobre doenças cardiovasculares. Tampouco o câncer, tido como a pedra no sapato da medicina atualmente, aparece nas primeiras posições do ranking de estudos científicos no país. As informações estão no banco de dados ClinicalTrials.gov, mantido pelo governo dos Estados Unidos, e que mapeia as investigações em andamento no mundo inteiro.

Conforme o compilado norte-americano, os laboratórios brasileiros reúnem hoje 6.382 estudos sobre 2.074 tópicos diferentes. Destes, “doenças vasculares” aparece como a maior fatia da pizza: 642 pesquisas. Em seguida, estão as infecções de qualquer tipo, com 640 estudos — entram aqui as chamadas arboviroses, como as transmitidas pelo Aedes aegypti e pelo HIV. Doenças músculo-esqueléticas (527) e as pulmonares (440) também parecem ter popularidade entre a comunidade científica. Sobre o câncer, são 364 — menos de 6% dos estudos.

Para se ter uma ideia, os Estados Unidos contabilizam 111,9 mil pesquisas clínicas e uma parcela mais generosa de ciência voltada aos tumores: 14,5 mil estudos, ou 13% do total. Considerados os números absolutos, isso dá quase 40 vezes mais que o Brasil.

A matemática assusta, mas, segundo especialistas, não é assim tão absurda quando se considera o momento que o Brasil vive. De acordo com o médico Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de pesquisa da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein, os tópicos “medalhistas” em investimento intelectual no país podem ser englobados em uma questão superior: a do envelhecimento da população.

“Doenças cardiovasculares, diabetes, câncer, tudo isso se encaixa dentro de um guarda-chuva mais genérico, das doenças degenerativas”, comenta. “O ser humano começa a envelhecer no momento em que é gerado. Hoje, estamos falando de 70, 80, até 90 anos de vida média para um cidadão. Então, se você olhar por esse lado, as pesquisas têm muito valor”, complementa o especialista.

Além disso, mesmo ainda em número mirrados, o conhecimento em neoplasias têm ganhado força no Brasil nos últimos anos, na avaliação do pesquisador Luiz Reis, diretor de ensino e pesquisa do Hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Conforme Reis, dentro dos laboratórios da instituição, havia um equilíbrio até pouco tempo atrás entre estudos na área de oncologia e em outras. “De alguns anos para cá, isso tem se invertido. O número de ensaios em câncer tem crescido significativamente, e acredito que aumente, seguindo até uma tendência mundial”, afirma o especialista.

A linha de pensamento do médico vai de encontro aos números oficiais do Brasil em pesquisa. Dos 187 ensaios clínicos aprovados pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil em 2017, 74% deles foram para câncer. A agência, no entanto, só avalia ensaios que tenham por objetivo subsidiar o registro sanitário de medicamento ou produto biológico. Pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos não passam, portanto, pela chancela do órgão de regulação.

Que zika?
Mesmo que a base de dados só aponte seis estudos sobre a febre amarela — 328 pessoas morreram da enfermidade no país até abril, segundo o Ministério da Saúde –, e 11 sobre o zika vírus, Rizzo não vê os números ralos como algo ruim e nem acha que o Brasil tenha alguma “obrigação” em entregar mais resultados sobre os temas que os demais.

RAFAEL NEDDERMEYER/FOTOS PÚBLICAS

“Isso era mais verdade há algum tempo, quando nossa população era menos urbana. As doenças infecciosas são importantes no Brasil, mas se olharmos nossos números, daqui alguns anos teremos a maior porcentagem de obesos do mundo”, sublinha.

Hoje, estamos muito mais capacitados para desenvolvermos, por exemplo, uma vacina de dengue que outros países. Mas talvez menos para estudarmos a obesidade, que vai ser um problema de saúde grande no nosso país.

Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de pesquisa da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein

Quem banca tudo isso?
Das pesquisas em andamento hoje em território nacional, 2,5 mil delas são financiadas pela indústria farmacêutica, 39,5% do total. Outros 3,7 mil entram no que a biblioteca médica americana chama de “outros”: universidades, organizações privadas e indivíduos.

Desse balaio, é de universidades de São Paulo a maioria dos estudos: 686 com a Universidade de São Paulo e 331 com a Universidade Federal (Unifesp). A fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) também aparece como uma das principais colaboradoras das investidas científicas no Brasil: são 311. A Universidade de Brasília tem 42 pesquisas, conforme os dados, que vão desde os efeitos do pilates em casa até a dosagem de radioterapia em pacientes de câncer colorretal.

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Na visão de Luiz Reis, do Sírio, essa fotografia das pesquisas pode estar relacionada a um maior aporte em produção de conhecimento nos últimos 20 anos. “Sem nenhum juízo de valor ou político-partidário, nos dois governos Lula e no primeiro governo de Dilma, o país experimentou um aumento expressivo de recursos para essa área. O investimento passou a ser constante, e não mais espasmódico”, comenta.

Hoje, o conhecimento científico do país é muito dependente de universidades públicas. A geração de saber fora delas é em áreas muito específicas

Luiz Reis, diretor de ensino e pesquisa do Hospital Sírio-Libanês

Do lado das indústrias, é a Sanofi a maior parcela dos estudos: 224. Mais da metade é sobre a segurança de produtos de higiene, sobretudo sabonetes íntimos. O resto se divide, principalmente, entre diabetes e artrite reumatoide.

Se na balança, no entanto, os braços — e dólares — da indústria farmacêutica pesam menos do que a somatória dos estudos bancados por outros órgãos e empresas, esse aparente equilíbrio não necessariamente se aplica à qualidade das pesquisas, na visão de Rizzo. “O equilíbrio é numérico, mas aqui vemos muito as pesquisas do ‘eu também’. Temos estudos de menor impacto. Baseados no que está sendo feito lá fora”, diz o pesquisador do Einstein.

O que deve contar mais que o dinheiro da indústria, acredita Rizzo, é o envolvimento da população no que está sendo feito em laboratório pelos pesquisadores em saúde do país. “A sociedade tem que escolher por si o que ela quer financiar”, afirma o médico.

Ele lembra ainda que o número de pesquisas no Brasil é pequeno diante do potencial de diversidade genética e de doenças presentes na nossa população.

Países que investem em pesquisa crescem como sociedade. E a coisa mais importante não é o resultado que você tem com essas pesquisas; Mas, sim, o processo de adquirir conhecimento. Isso engrandece o homem e todos os envolvidos.

Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de pesquisa da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein

 

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