Humildade e sacrifício, conceitos que deixamos de valorizar

Queremos acreditar que somos capazes de controlar tempo e espaço. Quase nunca dá certo e, ainda assim, insistimos

João Rafael Torres
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O ser humano é um bicho frustrado. Não por natureza, mas por civilização: insistimos em ideais que não se adaptam à realidade, e isso nos leva a sofrer.

No mundo contemporâneo, tudo isso fica ainda mais nítido. Vivemos uma falácia cotidiana, chamada domínio das variáveis. Queremos acreditar que somos capazes de controlar tempo e espaço, que teremos a precisão para fazer da vida o que bem quisermos. Quase nunca dá certo e, ainda assim, insistimos.

Especialmente porque temos acesso a (muita) informação, sentimos a falsa impressão de que, ao sabermos de tudo (?), estaremos no comando. A frustração bate ao percebermos: na teoria parecia perfeito, mas o script planejado não cabe na vida.

Deveríamos, no entanto, aprender que a frustração não é apenas um mal: a partir do limite imposto, aprendemos a aprofundar nossos talentos e a explorar possibilidades em desuso. Nossos antigos consideravam e respeitavam isso. Por esse motivo, valorizavam tanto o sacrifício.

Jejum, penitência, oferenda, restrição. Esses e outros ritos de abnegação permeiam praticamente todas as intervenções religiosas, das primordiais às contemporâneas, e sempre tiveram um grande valor, seja em favor individual ou coletivo.

É a devoção reverente a um Deus Pai (a personificação sagrada do “não”). Curvar-se, ajoelhar-se, prostrar-se. Gestos repetidos nas mais diversas tradições religiosas para sinalizar o reconhecimento de quem somos diante da divindade: menores, vulneráveis, submissos, dependentes.

A interpretação de que o sacrifício aponta para a elevação da alma tem um propósito psíquico: redimensionar o tamanho do ego – muitas vezes inflacionado pelas fantasias de poder e controle – e colocá-lo novamente a serviço da nossa sabedoria inata, a qual nem sempre acatamos.

Quando abdicamos de um prazer ou um poder ao qual temos acesso em nome de algo mais profundo, não estamos apenas escolhendo um caminho de sofrimento. Sinalizamos à alma que estamos a ela submissos, e entregues, assim, à sua custódia.

É também uma aliança de confiança que estabelecemos com a vida. Eis o motivo de nossos ancestrais terem realizado sacrifícios inconcebíveis nos dias de hoje (o de um filho, por exemplo). A manifestação da divindade era proporcional à entrega. “O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê”, filosofa Meister Eckhart.

Como acessar algo sagrado em nós se não estamos minimamente disponíveis para frustração voluntária? Como acessar o mistério, a dádiva e o amor se nos mantemos fiéis ao propósito de controle dos acontecimentos? Se, com um smartphone nas mãos, acreditamos deter a regência de toda a realidade?

A dor da nossa civilização não deriva de um mundo piorado, e sim de uma humanidade com valores de realização inflacionados, com severas falhas na aceitação do não. A qual faz birra quando não desfruta, na hora e da forma desejada, daquilo que se acha merecedora. Nós ainda não entendemos a efemeridade das coisas, dos mandos, da própria vida.

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