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Incentivos fiscais e concorrência: uma relação espúria

É preciso repensar a concessão de incentivos fiscais, pois estes fazem mal aos estados, municípios, aos pequenos e médios empresários

Autor Oksandro Gonçalves

atualizado

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No último dia 25 de abril, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento dos Recursos Extraordinários 592.891 e 596.614, decidiu que as empresas que adquirem insumos isentos da Zona Franca de Manaus (foto em destaque) poderão aproveitar o crédito, mesmo não tendo feito o pagamento do imposto na fase anterior.

Estimativas do governo federal indicam um rombo fiscal entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões. Todavia, a visão restrita ao aspecto orçamentário precisa ser urgentemente revista. Além de não levar em conta os reflexos fiscais, a Corte Constitucional também deixou de considerar outro aspecto, igualmente relevante, mas muito negligenciado no Brasil, que são os impactos anticoncorrenciais gerados pelos incentivos fiscais concedidos de forma atabalhoada pelos estados brasileiros.

O artigo 146-A, da Constituição Federal, expressamente reconheceu a possibilidade de a tributação ocasionar desequilíbrios concorrenciais, motivo pelo qual estabeleceu que uma lei complementar regularia essa matéria. O problema é que essa lei jamais foi editada, e o Supremo Tribunal Federal foi obrigado a decidir a questão.

O problema concreto é que o tributo não é neutro no plano concorrencial, ou seja, mudanças tributárias impactam a concorrência porque, ao final, haverá um reflexo no preço do produto ao consumidor. Este, por sua vez, é muito sensível a esse fato, o que se denomina de elasticidade cruzada, ou seja, mínimas variações de preço alteram a decisão final do consumidor em comprar este ou aquele produto.

No caso dos refrigerantes, a Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras) chegou a ingressar como amicus curiae no processo. Essa figura funciona como um “amigo” da Corte, pois pode trazer mais elementos e fundamentos para ajudar no processo decisório.

A associação demonstrou que as grandes fabricantes de bebidas no Brasil, todas empresas estrangeiras, possuem fábricas de concentrado localizadas na Zona Franca de Manaus, e que de lá trazem esse ingrediente, essencial para fabricar o produto final, o refrigerante.

Ocorre que, nesta operação, não vem apenas o insumo, mas também um conjunto fabuloso de créditos tributários, justamente a matéria que o Supremo Tribunal Federal julgou – e decidiu, por seis votos a quatro, que era lícito aproveitar o crédito, mesmo não tendo pago nenhum imposto na fase anterior.

Em miúdos, existe no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da não cumulatividade, que tem por objetivo evitar a cobrança de impostos em cascata. Sendo assim, em certos casos em que há a cobrança de imposto na fase anterior, cria-se um sistema de créditos e débitos de tal sorte que, na fase final de produção, o tributo pago na fase anterior servirá para compensar o devido na fase posterior.

No caso dos concentrados na Zona Franca de Manaus, essa fase anterior não existe, ou seja: como o insumo é isento do pagamento de impostos, a fábrica de concentrado nada paga, mas projeta para frente um crédito que beneficia o envasador do produto, porque ele abaterá o imposto devido com o crédito. Esse crédito, no entanto, é artificial, fruto de uma ficção jurídica que não guarda relação com a realidade da operação.

Ao assim proceder, o fabricante que pode usar o sistema via Zona Franca de Manaus ganha uma vantagem concorrencial, porque ele não precisa desembolsar dinheiro para pagamento de imposto devido na operação final: ele usa os créditos fictícios e paga o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Preço final
Se não desembolsa nenhum valor, ele pode usar o dinheiro que seria utilizado para pagar o imposto e usá-lo em ações de marketing e para reduzir ou controlar o preço final do produto ao consumidor, prejudicando os demais concorrentes que não dispõem desse mecanismo.

Desse modo, a concessão desse incentivo fiscal transverso pelo Supremo Tribunal Federal vai produzir um efeito anticoncorrencial principalmente nos pequenos e médios fabricantes de refrigerantes, os quais não conseguem operar na Zona Franca de Manaus em razão de problemas de escala, custos de operação e outros que os impedem de utilizar o mesmo benefício.

Infelizmente, é preciso estudar a fundo o impacto dos incentivos fiscais sobre a concorrência antes que seja tarde demais. Afinal, desde 1990 o número de fabricantes de refrigerante caiu de 850 para pouco mais de 200, demonstrando que o setor sofre com a concorrência, que, em boa parte, não está pautada em um produto melhor, mas em benefícios fiscais díspares que lhe retiram a competitividade.

Também sofrerão prejuízo os municípios e estados brasileiros, pois sem o recolhimento do IPI faltam recursos para o Fundo de Participação dos Estados e Municípios, composto fundamentalmente de uma parcela do Imposto de Renda e do Imposto de Produtos Industrializados.

A Receita Federal realizou estudo no final de 2018 e concluiu que a redução dos incentivos fiscais de IPI para concentrados na Zona Franca de Manaus poderia trazer aos estados R$ 382 milhões, e aos municípios, R$ 399 milhões, números nada desprezíveis, neste momento de crise econômica, e que se referem a apenas um pequeno período de avaliação. O estudo foi realizado para amparar as medidas de ajuste fiscal necessárias para subsidiar o diesel em razão da greve dos caminhoneiros em 2018.

Por tudo isso, é preciso repensar a concessão de incentivos fiscais, pois fazem mal aos estados, municípios, aos pequenos e médios empresários.

  • Oksandro Gonçalves é professor titular de direito econômico da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, doutor em direito das relações sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em direito econômico pela PUC-PR e advogado

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