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Cinco diferentes formas de desenhar, por Cecilia Mori

A artista está em cartaz com mostra individual, localizada no Elefante Centro Cultural

atualizado

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Borrachas automotivas e lacres de plásticos são materiais os mais toscos, os mais vulgares, aos quais Cecilia Mori empresta interesse e sobre os quais imprime sua marca. Estão entre os interesses da artista esmiuçados ao longo de Uma Tipologia de Nós: Cinco Formas de Contar Horas Alongadas.

Sua mostra individual, em cartaz no Elefante Centro Cultural, traz Cecilia Mori às voltas com diferentes materiais e entretida em diversos procedimentos. Mas cada uma das cinco obras aqui reunidas pode ser entendida como parte de um mesmo processo graças a alguns fatores particulares a Cecilia.

Primeiro, porque ela enxerga todos os seus exercícios em analogia, em aproximação com o desenho, e isso vale mesmo para sua recente incursão pela fotografia. (O que faz todo sentido, sendo ela professora de desenho do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.) Segundo, porque mesmo o material mais industrial, frio e impessoal que chega às mãos de Cecilia, como as tais borrachas automotivas, logo será modificado pelo simples fato de ter chegado às mãos de Cecilia.

E há ainda um terceiro motivo. “Eu gosto de criar pequenas narrativas em cada trabalho”, conta Cecilia, ciente de muitas vezes tais histórias ficam apenas entre ela e o material, entre ela e o seu desenho, não necessariamente precisando prosperar até o respeitável público.

No entanto, para nos embrenharmos um tantinho nestas cinco obras de Cecilia Mori, cinco pequenas narrativas, ela nos recebeu no Elefante na tarde da última quarta-feira…

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Uma Tipologia de Nós, esse nome da exposição, Cecilia e a curadora Cinara Barbosa tomaram emprestado de uma instalação que ocupa um par de paredes da sala térrea do Elefante. Sobre uma bancada de madeira, uma coleção de alongadas borrachas se oferece aos olhos, e não foge ao alcance das mãos. Ao lado desse patamar, uma delicada série de pequeninos desenhos em grafite sobre papel se espalha na parede, repetindo em linhas tênues os nós dos mais variados a que as borrachas foram submetidas.

De modo que uma mesma obra busca o diálogo entre materiais trazendo os elementos mais primitivos do desenho. A saber: ponto, linha, superfície. Mas essa sacada intelectual ainda estava distante dela, quando Cecilia entrou, em novembro passado, na Pioneira da Borracha, um dos endereços mais duradouros da W-3 Sul. Ela tinha ido buscar uma manta de borracha automotiva. Saiu de lá carregando também miudezas mil: borrachas de refrigeração de diferentes formatos, espessuras e resistências. Retalhos que ela encontrou sobre o balcão da loja e depois espalhou no chão do ateliê – não pôde resistir a tamanho apelo tátil.

“Meu processo começa pelo encantamento com o material. Quando vi esses retalhos na loja, não sabia exatamente o que fazer. Fiquei pensando em desenhar luz e sombra, levar para as aulas de desenho na universidade. E comecei a mexer nas borrachas, a dobrar e a amassar. Porque eu gosto de uma certa manualidade. Ao dar o primeiro nó, um interesse se apresentou para mim. Comecei a entender o volume, o conjunto, a trabalhar o que seria uma composição. Notei que nem todas as borrachas têm o mesmo comportamento. Algumas são superduras, outras totalmente delicadas, que se rompiam com a menor força. Fui entendendo como cada material se comportava. A ideia de apresentá-las assim, tem a ver com o próprio processo, como uma catalogação.”

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Outra pesquisa de campo mui frutífera para Cecilia Mori se deu entre as papelarias. Ela acabou com os estoques de borrachas ponteiro do Plano Piloto e teve que recorrer às lojas de Taguatinga. Trata-se daquelas infames borrachinhas escolares que se encaixam na rabeira do lápis – e que, na real, mais servem para rasgar o papel do que para de fato apagar o que quer que esteja escrito.

Cecilia calcula ter comprado mais de três mil dessas borrachas. Em pacotes de 50 caixas de 100 unidades. Cada uma delas foi fatiada em diferentes tamanhos com faca de cozinha – o fio mais adequado, ela descobriu, após estragar uns tantos estiletes. Os pedacinhos, então, foram colados em chapas de madeira, após algumas tentativas pouco enobrecedoras sobre papel paraná, um suporte que nada acrescentava ao objeto, no entender da artista.

E assim surgiu Quando um Giro Faz Mirar Órbitas Desviadas, instalação de parede em que Cecilia trabalha as texturas e os volumes da borracha numa viagem que a faz pensar tanto na dimensão estrelar que dá título à peça quanto no fundo do mar – por isso a intenção de deixar praticamente espaço negativo nenhum entre as borrachas, as circunferências desenhadas sobre a madeira, fechando o conjunto como se fosse uma forma orgânica.

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Subindo a escada do Elefante, a parede ao fundo da casa se revela convenientemente pintada de cinza para poder receber Como se Bestas Pudessem se Dilacerar por Outros Planos, uma instalação que Cecilia e Cinara levantaram a partir de desenhos da artista, até fecharem (praticamente) toda a parede.

Mais uma vez, a obra surgiu do material. Numa viagem a São Paulo, Cecilia encontrou, na seção de mangás de uma papelaria, esse papel artesanal, feito puramente de algodão e de formato quadrado (40 por 40 cm). O papel, mui absorvente, aceita bem o nanquim e não tem superfície das mais uniformes, sugerindo aos olhos de Cecilia as manchas de cor que ela aplicou usando tinta óleo em bastão.

Mesmo a ostensiva presença da tinta, para Cecilia, não faz com que se perca a configuração de desenho. “Essas manchas de cor, eu as percebo quase como um território, um mapeamento, um contorno, então, para mim, eu penso em algo característico da pintura aqui funcionando como estampa, como uma malha.” E sobre essa malha de manchas de cor entram ainda outros tipos de inscrição: bolotinhas desenhadas em grafite, linhas retas, caligrafias obliteradas.

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E se a Graça das Gogoias Encontrasse a Terra?, pergunta Cecilia, sem esperar a resposta, sugerindo um recomeço – ou um processo criativo que não termina, e alimenta a si mesmo. Esse é o primeiro trabalho da artista em fotografia. Mas remonta a um interesse já conhecido. O tão reles lacre de plástico, afinal, é um material que está com ela desde 2015. Pode ser encontrado armazenado aos milhares em sacos e sacos no seu ateliê, na Babilônia Norte. Já virou instalações de parede sob várias configurações, inclusive ano passado em mostra coletiva aqui no Elefante.

Montando e desmontando essas instalações, ficou claro para Cecilia que o material estava a sugerir algo além de ser apenas erguido numa parede. A ela, interessa muito a ambiguidade visual. “É fofinho, mas parece um porco espinho.” Pensando nisso, fez pequenas peças para ver se seria possível vestir lacres de plástico. E os vestiu ela mesma, colocando o próprio corpo nestas imagens. Foram mais de duzentas fotos, em diferentes ângulos, para cada uma das vestimentas – e depois as imprimiu em papel canvas, para valorizar o aspecto visual do plástico, que chega a sugerir lâminas afiadas.

Para o momento, Cecilia se considera assaz satisfeita com essa sequência fotográfica. Mas sabe que não vai parar. “Aqui está muito de meu processo com os materiais: já explorei no espaço, agora quero explorar no corpo. Vou partir para uma performance depois disto.”

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E fechando a nossa visita ao Elefante, a tal manta que levou Cecilia Mori à Pioneira da Borracha pela primeira vez nesta aventura. Aqui a peça se encomprida pela casa, abraçando a arquitetura, se lançando de uma parede à outra, chegando a uma falsa parede e a empurrando um pouco mais pra lá, mais pra cá.

Supernova para Tempos em Vãos nasceu assim, quando Cecilia chegou a seu ateliê com uma manta de borracha de oito milímetros de espessura. E depois de muito corpo a corpo, percebeu que queria deixá-la assim como a encontrou, nua, quem sabe apenas pendurá-la do teto, como uma tapeçaria num castelo medieval. Conversando com Cinara, veio a sugestão de, mais uma vez, trabalhar a ideia de linha, de desenho sobre a especificidade da arquitetura do imóvel.

A falsa parede foi arrastada um tantinho apenas para abrir um pequeno intervalo, um vão, no meio da obra, por onde vaza a luz da janela ali atrás. “Chegamos a parede um pouco de volta, porque a borracha cedeu e gostei desse volume, resolvemos adotá-lo. Achei que tinha a ver com uma pesquisa em pintura, dá uma sobra ao material, dá um volume ao trabalho.”

Cecilia gostou também do aspecto bruto do talco que a manta de borracha carrega desde a indústria. A peça chega à loja enrolada e, para não suar, para não colar sobre ela própria, os fabricantes passam esse talco. O que empresta à superfície uma série de relevos e acontecimentos, uma série de desenhos.

“Gosto de pensar que o momento em que uma estrela mais brilha é o momento de sua morte”, diz Cecilia Mori, comentando sobre a ideia de Supernova para Tempos em Vãos, uma imagem da astronomia à qual ela emparelhou um acento conjuntural deste 2018. Que a tarja preta, para a artista, assim deitada na horizontal, traz aos sentidos e à lembrança um tanto de censura, de interdito. “O preto absoluto pode cegar tanto quanto a luz intensa.”

Desenho digital que compõe a instalação Uma Tipologia de Nós: impressão em papel Canson

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