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Crise na Venezuela atinge doentes mentais, que ficam sem remédios

Mau estado das instalações de instituições psiquiátricas também corroboram para a regressão da saúde mental no país

atualizado

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Leandra Felipe/Agência Brasil/EBC
Venezuela
1 de 1 Venezuela - Foto: Leandra Felipe/Agência Brasil/EBC

Blanca morde. Forte. Diagnosticada décadas atrás com esquizofrenia grave, Blanca Livia Arcineiga, 49 anos, chegou a controlar sua condição. Pouco tempo atrás, ela era estável o suficiente para trabalhar meio período como empregada doméstica. Ajudava a mãe idosa na cozinha. Elas dormiam na mesma cama.

Agora ela está deitada, sozinha e nua em um colchão sujo dentro de um quarto fétido. Sua família trancou a porta – para impedi-la de atacá-los.

A Venezuela socialista e devastada pelas sanções cambaleia rumo a uma das piores implosões econômicas da história moderna, e Blanca é um dos exemplos mais desumanizadores de seus efeitos colaterais: a crescente crise na saúde mental.

A condição de Blanca se deteriorou acentuadamente nos últimos oito meses, disse sua mãe, porque a família não consegue encontrar nem pagar pelos medicamentos de que precisa. Hoje eles arranjam apenas uma de suas oito prescrições – um anticonvulsivante. Como resultado, Blanca regrediu a um estado selvagem.

A família, que tem renda familiar de US $ 16 por mês, sobrevive da mandioca e da banana. Mal puderam pagar pelo portão pesado que fecha o quartinho de Blanca.

“Ela me odeia por causa desse portão”, disse Aurora García Sánchez, a mãe, 81 anos, apontando para as grades. “Mas tive que trancá-la aí dentro”.

García olhou para os olhos distantes da filha. “Aí está minha Blanquita”, disse. “Não sei quem ela é”.

Anos de políticas socialistas fracassadas, má administração econômica e corrupção cobraram um pesado tributo da sociedade venezuelana. Para grande maioria, hiperinflação, desemprego, apagões e escassez de alimentos e água fizeram da vida uma luta diária pela sobrevivência.

O impacto na saúde foi agudo.

A escassez de medicamentos – aspirina e antibióticos, mas também remédios contra o câncer e antirretrovirais para pacientes com HIV – transformou os hospitais estatais em centros para pacientes desesperados e moribundos.

E a espada corta duas vezes na carne dos doentes mentais: o estresse está exacerbando os sintomas e as condições de saúde mental, aos quais o sistema de saúde já não consegue responder. Os médicos dizem que a falta de medicamentos e a deterioração das instalações do Estado dispararam o número de mortes evitáveis.

No hospital El Peñon, uma das principais instalações psiquiátricas da capital, 14 pacientes morreram desde 2016 – três apenas este ano – por causa das más condições e da falta de medicamentos, segundo dois médicos que trabalham no local. As fatalidades, disseram eles, atingiram principalmente pacientes idosos que lá chegaram, em péssimas condições físicas, transferidos de outras instalações estatais fechadas por falta de recursos públicos.

O hospital e o Ministério da Saúde da Venezuela não responderam aos pedidos de comentários. Como a saúde pública se deteriorou, as autoridades pararam de publicar dados. Mas os médicos – que falaram sob condição de anonimato, por medo de represálias do governo – disseram que a grave escassez de funcionários e medicamentos, incluindo medicamentos antipsicóticos, foi uma sentença de morte.

“O sistema imunológico dos pacientes já estava fraco, e o hospital está em péssimas condições, sem remédios e com uma comida terrível, então eles pioraram”, disse um médico.

Os venezuelanos também estão manifestando com mais intensidade o estresse relacionado à crise, que, segundo os médicos, agravou as doenças mentais, o vício e as taxas de suicídio.

Pedro Delgado, um dos principais psiquiatras da Venezuela, disse que a demanda por tratamento contra abuso de substâncias em sua clínica particular mais do que dobrou no ano passado. No entanto, o número de pacientes que ele trata vem diminuindo constantemente, porque cada vez menos pacientes conseguem pagar pelo tratamento.

Para ajudar os venezuelanos em crise, ele disse que ofereceu descontos e trabalhou com uma fundação sem fins lucrativos que cobre a assistência em saúde mental de quem não pode pagar o preço total.

“O maior fardo é para as famílias”, disse Delgado. “Cuidar de parentes sem tratamento é a própria definição de pesadelo”.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a taxa de suicídio na Venezuela caiu de 4,3 por 100 mil pessoas em 2010 para 3,7 em 2014. Sem números oficiais disponíveis desde então, o Observatório Venezuelano da Violência, que vem realizando pesquisas de campo e acompanhando a mídia local em vários estados, afirma que o número de suicídios no mínimo dobrou nos últimos quatro anos, para algo entre 9 e 9,5 por 100 mil. No estado de Mérida, agora são 19 por 100 mil, sugere a pesquisa do grupo.

“É altamente provável que a maioria dos casos esteja ligada à crise”, disse Gustavo Páez, pesquisador do observatório.

Luis Blanco, 33 anos, técnico de TI e morador do subúrbio de Caracas, está sofrendo para lidar com a condição de seu pai. O homem de 61 anos tem transtorno bipolar e depressão clínica. Sem conseguir encontrar ou comprar remédios, disse Blanco, ele fica agressivo. Costuma voltar para casa com hematomas de brigas. Às vezes, simplesmente desaparece durante a noite.

“É claro que lidar com isso atrapalha minha vida”, disse Blanco. “Esta semana precisei trabalhar até tarde e muitas vezes ele não estava aqui quando cheguei. Outro dia, cheguei aqui às dez e ele não estava, então tive que sair para procurá-lo. Não o encontrei, então esperei. Tinha que dar o remédio dele. Acabei indo dormir só às duas da manhã, quando ele finalmente apareceu. E tenho que levantar às cinco para trabalhar”.

Os parentes estão lutando para tratar os doentes mentais em casa, até mesmo porque os hospitais de saúde mental praticamente entraram em colapso.

O Hospital Psiquiátrico de Caracas – um dos maiores da capital – ergue-se sobre uma colina com vista para um labirinto de ruas lotadas. A maior parte do hospital está sem luz, porque a administração não consegue comprar lâmpadas novas. Os administradores não têm comida para dar aos pacientes. A maioria dos quartos está tão deteriorada que o hospital de 200 leitos agora acomoda apenas 20 pacientes. Os médicos rejeitam vários pedidos de tratamento hospitalar a cada semana.

As máquinas de lavar não funcionam, deixando os pacientes com roupas sujas. Não há produtos para limpar os banheiros. Não há água potável. Os pacientes sobrevivem de suprimentos trazidos por parentes ou bebem água suja do encanamento.

“Não podemos aceitar mais pacientes, porque sem os medicamentos, eles podem ameaçar a integridade física dos outros pacientes e dos enfermeiros”, disse Peter Williams Contreras, representante do sindicato do hospital.

“O país inteiro está em crise e estamos no meio disso”, disse ele. “O governo não tem políticas de saúde, muito menos de saúde mental. É uma grave violação dos direitos das pessoas com problemas de saúde mental”.

A enfermeira Johana Hernandez disse que um paciente foi trazido recentemente com o pé esquerdo machucado. O ferimento infeccionou, disse ela, e o hospital não tinha medicamentos para tratá-lo.

“Ficou cheio de vermes e continuou piorando”, disse ela. “O paciente, que tinha esquizofrenia, morreu há um mês”.

Atrás das grades de um pátio trancado, onde são mantidas pacientes do sexo feminino, Dorelis Luz Díaz, 38 anos, disse que estava assustada. Ela tem transtorno bipolar. Desde que chegou aqui, há três meses, foi mantida em local fechado com uma mulher que ela e as enfermeiras dizem ser uma esquizofrênica violenta condenada por assassinato.

A mulher jogava suas próprias fezes pelo pátio enquanto Díaz falava.

Díaz passou vários meses sem medicação, disseram ela e as enfermeiras. Falando em frases rápidas e ofegantes, ela disse que sua vizinha violenta às vezes escapa da cela à noite.

“Outro dia, no meio da noite, ela veio e me esganou, dizendo que queria tirar minhas roupas”, contou Díaz. “Fiquei realmente assustada, porque ela me sufocou com força. Depois, me joguei no chão e chorei”.

Sem remédio, disse Díaz, “vamos piorar”.

“Tenho recaídas. Fico deprimida. Quero chorar. Quero gritar. Agora estou nos meus dias de menstruação e não tenho nem toalhas sanitárias. Fico toda suja”. No dia seguinte, ela parecia ainda mais perturbada. “Fiz xixi na cama”, disse ela. “Tentei limpar os lençóis, mas não tem sabão”. Ela olhou para baixo, desolada, por traz das grades. “Sinto falta de comida”, disse ela.

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