Rafael Campos

Se fossem pedir carona para cruzar os Estados Unidos em 2018, Sal Paradise e Dean Moriarty, protagonistas do clássico On the Road, de Jack Kerouac, talvez não precisassem manter o dedão em riste no meio de uma rodovia com a esperança de alguém parar. Sim, o polegar ainda mantém seu simbolismo nessa prática de viagem tão antiga. Os caronistas, entretanto, agora o usam para escolher seu roteiro pela tela do smartphone, fazem isso de casa e também conseguem informações detalhadas sobre quem vai levá-los até o destino.

Longe do espírito contraventor beatnik, mais próximos de uma geração preocupada com mobilidade urbana, muitos motoristas e passageiros têm encontrado nos aplicativos de caronas uma forma de driblar o caos no trânsito e, ao mesmo tempo, economizar com transporte. E isso envolve quebrar o estereótipo do caronista andarilho na beira da estrada. O aposentado José Nunes Marques, de 62 anos, é um bom exemplo desse cenário.

Cabelos brancos, camisa social, mochilão pesado e um papo fácil de quem sabe se virar pelo mundo. Ele viaja o Brasil como turista e usa apps para transitar entre uma cidade e outra. “O gasto é 30% menor quando peço carona. Sou um caronista de carteirinha: vejo as avaliações do motorista e vou”, garante. Sua principal preocupação não envolve a diminuição do número de veículos nas rodovias. Contudo, essa é uma das consequências decorrentes da prática.

Waze Carpool
BlaBlaCar
Zumpy
Carona Phone

Em 2017, por volta de 43,3 milhões de veículos circularam pelo país, de acordo com estudo do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) divulgado no primeiro semestre deste ano. Cerca de 8,6 milhões estão em São Paulo, mais de 7 milhões no Rio de Janeiro e 1,7 milhão no Distrito Federal, segundo dados dos departamentos de Trânsito dessas unidades da Federação. “As ações devem se somar. A carona é uma opção de mobilidade que não causa aumento na quantidade de automóveis”, afirma Pastor Willy Gonzales Taco, coordenador do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transportes da Universidade de Brasília (Ceftru-UnB).

Para o especialista, mesmo não sendo a solução, essa realidade é algo que tende a se tornar hábito com as facilidades dadas pelos aplicativos, principalmente entre as gerações mais jovens, curiosas sobre novas opções para se locomoverem de um lugar para o outro. “Mas a evolução desse mercado depende das políticas públicas que serão criadas a partir de agora”, frisa.

De carona com a legislação

Pessoas dão e recebem carona desde os tempos das charretes. Entretanto, a propagação dos aplicativos – e sua consequente popularização – causou apenas discussões no poder público e nenhuma medida prática. Um exemplo é o Projeto de Lei n° 8074/2014, que “institui o ‘Sistema de Carona Legal’ em âmbito nacional”. A proposta visa regulamentar o transporte solidário, a fim de evitar que a prática seja confundida com transporte irregular. Em seu último despacho, de junho deste ano, o texto seguiu para apreciação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

Enquanto isso, os serviços se multiplicam. Desde 21 de agosto, o Brasil é o primeiro país a ter o serviço Waze Carpool em todo o território. Antes, estava restrito a Israel e seis estados norte-americanos. No app, o estímulo envolve não apenas a ideia do compartilhamento dos carros mas também dos gastos envolvidos nas viagens.

Quem está ao volante determina o valor da carona, mas há uma média sugerida: até 4km, R$ 5; entre 5km e 40km, R$ 10; superior a isso, até R$ 24. No primeiro momento, entretanto, o passageiro desembolsará apenas R$ 2, o Waze vai pagar o restante do valor para o motorista.

“Quando criamos o Waze, tínhamos a intenção de ajudar as pessoas a economizarem cinco minutos todos os dias. Atualmente, existem tantos veículos circulando nas ruas que os atalhos de trânsito estão quase acabando. Não queremos simplesmente achar o melhor caminho, mas melhorar o uso do carro”

Douglas Tokuno, representante do Waze Carpool no Brasil.

Segundo os gerenciadores dos aplicativos de carona, eles não fazem transporte privado, pois os motoristas não obtém lucro com a prática, apenas partilham custos. Essa contenda será resolvida longe dos volantes. No Código de Trânsito Brasileiro, o parágrafo 8° do artigo 231 proíbe transitar com veículo “efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente”. Márcio Dias, advogado especialista em trânsito, afirma que, pela legislação, qualquer cobrança é proibida quando se trata de carona. Caso isso aconteça, há descaracterização da atividade: se torna transporte remunerado e precisa seguir as regras de cada estado.

“Mesmo com a afirmação de que os valores foram rachados para, por exemplo, pagar pela gasolina, isso é algo subjetivo. Não há como garantir o uso do dinheiro para esse fim. Depende da interpretação”, garante. Para o especialista, os aplicativos só terão sucesso caso haja regulamentação. “Enquanto isso não ocorre, quem dirige corre o risco de ser fiscalizado. No Rio de Janeiro, as vans foram regulamentadas. Os aplicativos de transporte individual de passageiros privados também. Se houver uma boa aceitação entre os usuários, isso deve acontecer com a carona solidária”.

Participante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-RJ, Débora Martins não vê problemas por conta da divisão dos custos. “Acho difícil policiais aplicarem multas do tipo. Esses aplicativos têm um viés solidário e reduzem as despesas. Por exemplo, quem sai da Região dos Lagos em direção ao Rio de Janeiro paga, em média, R$ 80 de ônibus. De carona, gasta R$ 30”, diz. A especialista, claro, sabe da possibilidade de alguém tentar obter lucros, mas alerta: “Dirigir é uma atividade de risco. Se o motorista está levando passageiros, cobrando por isso e acontece um acidente, acaba sendo responsabilizado e pode responder civilmente de forma objetiva”.

De carona com a segurança

Porém, os apps precisam lidar com uma cobrança compartilhada por motoristas, passageiros e poder público: segurança. Algo ainda mais evidente após o bárbaro assassinato da radiologista Kelly Cristina Cadamuro. A jovem, de 22 anos, foi estrangulada por Jonathan Pereira do Prado, de 33, após combinar, pelo WhatsApp, uma carona cobrada. Ela foi encontrada seminua, com a cabeça mergulhada em um córrego e, dias depois, o Ministério Público em Minas Gerais confirmou que Cadamuro havia sido estuprada antes de ser morta.

“Segurança é uma preocupação desde que criamos o serviço. Para resolver esse problema, colocamos vários mecanismos. É preciso, por exemplo, se conectar ao Facebook e compartilhar as informações públicas. Há ainda um sistema de avaliações no qual passageiro analisa o motorista e vice-versa. Além disso, há um conceito de certificação: as instituições parceiras fazem uma checagem no perfil dos cadastrados, gerando mais confiança”

Márcio Batista, um dos criadores do Carona Phone.

O diretor-geral da BlaBlaCar no Brasil, Ricardo Leite, assegura que 80% dos usuários da plataforma de caronas compartilhadas chegaram até o app pelo boca a boca, garantindo maior segurança aos usuários. “Quando você combina a indicação de um conhecido com as informações do cadastro, rompe-se com a ideia de perigo”. Além da sincronização com o Facebook, o cliente precisa confirmar telefone, e-mail e apresentar de um documento, como o RG.

Para Douglas Tokuno, do Waze Carpool, a sensação de estar seguro é muito pessoal, mas a empresa tomou medidas para assegurar a proteção dos clientes. “Além das informações sobre o carro, há um chat que ajuda a tirar dúvidas. As mulheres podem acionar o filtro de gênero e levar apenas passageiras. E, dentro do perfil, é possível bloquear usuários”.

Segurança ainda é o principal questionamento entre os novos usuários dessas plataformas. A entrada da gigante Waze no mercado demonstra que, mesmo com o discurso da mobilidade, há um nicho econômico a ser explorado – apesar de a empresa não ter decidido monetizar a plataforma agora. A BlaBlaCar já pretende testar futuramente, entre outros, a venda de seguros para motoristas e passageiros.

Os funcionários do Ministério das Cidades resolveram essa questão da falta de segurança ao criar um grupo de carona apenas com colegas de trabalho. Os interessados encontram a lista de passageiros ou motoristas disponíveis no painel do hall de acesso principal. As informações também constam em uma versão web e aplicativo interno para celulares.

A instituição governamental gostou da ideia e criou iniciativas para os empregados se ajudarem. “Disponibilizaram cinco vagas de estacionamento exclusivamente para quem oferece carona aos colegas. Ainda é pouco, mas ajuda na mudança de pensamento”, conta Isis Cavalcante, analista de infraestrutura do órgão.

O programa Vou de Carona ainda se restringe aos funcionários do ministério, mas deve se espalhar. No setor privado, um exemplo é o Waze Carpool, testado por dois meses em empresas como Natura e IBM antes de ser liberado para todo o público. “Foram 40 mil quilômetros de caronas nesse período. Aprendemos que as empresas também estão buscando soluções para a locomoção das pessoas”, explica Douglas Tokuno.

“A carona solidária não deixa de ser uma boa ação e um modo acessório de usar os carros de forma mais eficiente. Além de reduzir a falta de estacionamentos, permite aos pedestres aproveitar melhor as cidades”

Uirá Lourenço, colaborador do site Mobilize, que trata de mobilidade urbana sustentável.

Esses aplicativos reforçam, mais uma vez, a fama de bom samaritano do brasileiro. Podem até tirar a espontaneidade de um encontro no meio da estrada, mas mantém a expectativa sobre quem vai entrar no carro. E, claro, ainda dá para usar o polegar.

De carona com o amor

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