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O sagrado e o cerrado, segundo Luiz Gallina

Destaque da coletiva “O Papel do Museu”, o artista plástico e professor Luiz Gallina abre as portas do ateliê de gravura da UnB e mostra sua recente produção

atualizado

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Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Jimi Hendrix e Rolling Stones ecoam baixinho pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Nove da manhã de quinta-feira, o som vai aumentando enquanto o visitante desce o corredor no rumo de um dos extremos do edifício térreo. Cruzando a porta aberta do Ateliê 8, pode-se surpreender Luiz Gallina entregue a seu ofício, enquanto ouve música, um tanto alheio ao resto do mundo.

Temas instrumentais dos pianistas Thelonious Monk e Jacques Loussier temperam a playlist no psicodélico MP3 de Luiz Gallina, enquanto ele mistura tinta amarela e tinta branca, mais glicerina, até encontrar, na ponta da espátula, o tom ideal de ouro para as impressões que pretende fazer esta manhã. “É aqui que a alquimia se realiza”, brinca Gallina, falando sério, à guisa de boas-vindas.

Luiz Gallina, como numa playlist mental, está percorrendo os armários de seu ateliê e os escaninhos de sua memória. Dali resgata antigas matrizes em madeiras de mogno, ipê e cedrina, peças que vem acumulando ao longo de três décadas como gravador. Ele recentemente adquiriu uma rica coleção de papeis coloridos e agora pretende usar cada uma dessas folhas, com as antigas matrizes, para rodar em sua prensa elétrica uma nova série de xilogravuras: “Sagrado e Profano”.

Rafaela Felicciano/Divulgação

Alquimia transversal
Em pleno andamento, a série ganhou esse nome por conciliar gráfica e poeticamente as diferentes pontas da trajetória artística que Luiz Gallina vem desenvolvendo desde meados da década de 1970. Seu estudo sobre alquimia, sua fascinação pelo mundo dos sonhos e seu apego pelo bioma do cerrado alimentam suas obras durante todo esse tempo.

“Esta é uma viagem em busca de mim mesmo”, define Luiz Gallina. Assim, ele bem pode unir na mesma folha o desenho de uma casca de árvore do cerrado, feito em 1992, com o registro de casarões antigos de Goiás Velho, que remonta a 1986. E arremata com um aceno a Fernando Pessoa, via Caetano Veloso, na frase “minha língua é a minha pátria”.

Um exercício que tira o contexto anterior de cada uma dessas gravuras originais e empresta a elas uma leitura diagonal. “Tudo isso sou eu”, concede Gallina. “Esta é a minha fala, e agora quero quebrar um pouco de sua lógica.”

Reencontro com o cerrado
O que leva a conversa até às “Paisagens Brasilienses”. Foi o amigo e mentor Bené Fonteles quem convenceu Luiz Gallina a doar para o Museu Nacional Honestino Guimarães algumas xilogravuras dessa série (na galeria abaixo), que o artista burilou ao longo dos primeiros anos da década de 1980.

Curador da atual mostra coletiva “O Papel do Museu”, que percorre os acervos do Museu Nacional e do Museu de Arte de Brasília, Bené Fonteles dedicou um generoso espaço para a recente doação de Gallina. Assim, ao longo de uma grande parede na imensa nave principal do Museu, 18 xilogravuras dessa série recriam a cidade de Brasília e o cerrado de Brasília conforme eles eram há 30 anos.

Depois de passar a adolescência na capital federal, o paulistano Luiz Gallina tinha voltado para a cidade natal. Lá permaneceu por um par de anos, 1976 e 1977, um tanto sem saber o que fazer, para onde ir. Voltando para Brasília, em 1978, ele redescobriu a cidade modernista num choque com o urbanismo de São Paulo. “O estranho é aquele que se conhece mas se esqueceu”, diz Gallina, citando Sigmund Freud de cabeça

“As coisas tinham parado de acontecer para mim em São Paulo, e nessa mesma época comecei a sacar gravura”, ele lembra. “Eu já tinha na cabeça que ia ser artista, ou que já era artista, enfim, eu iria trabalhar para isso.”

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Quando voltou para Brasília, o ainda claudicante artista encontraria seu tema. Ou, como prefere Gallina, o tema encontraria o artista. Morando na 308 Sul, a quadra-modelo de Lucio Costa, o jovem Gallina começou a fotografar seu redor, sua vizinhança. “Tudo que eu queria ver tinha uma árvore na frente, para onde eu olhava tinha folhas no meio.”

Entre suas “Paisagens Brasilienses”, pode-se reconhecer a 308 Sul, a 107 Sul e até percorrer os eixinhos. E um trecho virgem de cerrado revela a natureza que logo adiante seria engolida pela ampliação do Aeroporto.

Dentro do laboratório fotográfico, essas imagens seriam ampliadas sobre os cortes de madeira que, por sua vez, se tornariam as matrizes da gravação de Luiz Gallina para as xilogravuras. Na época, elas percorreram as galerias de arte da cidade e alguns happenings. O autor acabou negociando quase todas as reproduções (10 ou 12 para cada peça), salvo estas que guardou por todo esse tempo e que agora pertencem ao Museu Nacional.

“Alunos e colegas estão vindo falar comigo por causa dessa exposição”, conta Luiz Gallina, envaidecido. “A cidade precisava ter esta série de paisagens em seu Museu, acho que fiz a escolha certa quando atendi ao pedido de doação.”

E assim a cidade pode reconhecer o artista que só se reconheceu artista graças à cidade.

Até 1º de novembro no Museu Nacional Honestino Guimarães (Conjunto Cultural da República, 3325-5220). Terça a domingo, das 9h às 18h30. Entrada franca. Livre.

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