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Cannes: “BlacKkKlansman”, de Spike Lee

De volta à Cannes, o diretor de “Faça a Coisa Certa” troca a agressividade pela conciliação

atualizado

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Festival de Cannes/Divulgação
BlacKkKlansman
1 de 1 BlacKkKlansman - Foto: Festival de Cannes/Divulgação

O cinema atual está cheio de histórias com super-heróis, dragões e outros personagens do gênero fantástico. Quando apareceu no rol do Festival de Cannes um filme sobre um policial negro que vira um membro de carteirinha da Ku Klux Klan, a organização de supremacia branca mais longeva dos Estados Unidos, só poderia ser mais uma invenção de um cineasta mirabolante. Spike Lee até pode ser descrito assim, algumas poucas vezes, mas não por seu novo filme, “BlacKkKlansman”, baseado numa história verídica, mais estranha que a ficção.

Ron Stallworth (John David Washington) é o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs, no meio da década de 1970. Filho de militar e jovem idealista, ele quer ser uma força do bem numa delegacia institucionalmente racista, aonde seus colegas usam termos derrogatórios para suspeitos negros e o tratam com um desdém às vezes até inconsciente. Escondido no departamento de arquivos, Stallworth decide abrir um espaço para si mesmo, e demanda do capitão de polícia (Robert John Burke) uma posição na equipe de investigações.

Sua primeira tarefa é infiltrar um congresso do grupo radical Panteras Negras, ou seja, espionar e talvez delatar, outros negros. No entanto, as palestras e conversas que ele assiste abrem seus olhos ao fato de que a juventude negra deve se unir para se defender contra o racismo institucional. Em seguida, o jovem detetive responde via telefone a um anúncio da Ku Klux Klan na lista telefônica e decide investigar a célula local, composta de caipiras idiotas reunidos em torno de um líder bem inteligente, e portanto sinistro. Como Stallworth não pode mostrar a cara para estas pessoas, ele mantém contato apenas telefonico, e recruta outro policial, este judeu (Adam Driver), para interpretá-lo nas reuniões presenciais.

“BlacKkKlansman” é um trabalho derivado de uma carreira cinematográfica inteira, que incorpora todas as mensagens, todos os textos e subtextos, assim como grande parte da cultura cinematográfica negra, isso tudo além de sua trama, aonde a Ku Klux Klan planeja executar um atentado na cidade e os policiais tem de detê-los. O texto do filme é um paradoxo-sua maior vantagem e seu maior defeito, ao mesmo tempo. De certa forma, o filme é um aulão ministrado por um professor/diretor de 61 anos de idade. (Em dois momentos distintos, o filme para completamente para personagens darem palestras, manobra tolerável apenas pelo carisma dos dois atores palestrantes, Corey Hawkins e Harry Belafonte.)

Outras lições do aulão criticam dois épicos do cinema americano da Guerra Civil: “E o vento levou” e “O nascimento de uma nação”, sucessos históricos hoje amplamente criticados por seu tratamento de questões raciais. Há também discussões sobre clássicos do gênero blaxploitation, como “Shaft” e “Foxy Brown”. Spike Lee está certo sobre tudo o que fala, o problema é o tom didático e manso do filme. Toda vez em que a trama precisa reaparecer, o filme sofre um pouco, como no final convencional do atentado. Adam Driver, por exemplo, é um ator completamente desperdiçado na trama.

Prevalece sobre a obra um tom cômico, como se esta história é tão absurda que só poderia ser uma piada. É certo que o filme terá um grande público-ele insiste em entreter enquanto aborda temas pesados.

“BlacKkKlansman” é um filme que encoraja o movimento negro, mas sempre em um tom conciliatório. Diferentemente de alguns personagens mais radicais de seu filme, Lee não quer uma guerra entre raças, mas sim uma conciliação entre elas. Stallworth se apaixona, afinal de contas, por uma radical dos Panteras Negras, que considera qualquer negro que vira um policial, um traidor. Um dos cenários mais interessantes do filme é a delegacia, que apesar de seu racismo institucional, é extremamente apoiadora de Ron Stallworth. As barreiras que ele enfrenta lá são vencidas sem muito confronto. Na verdade, o que acontece com o único policial abertamente racista e hostil é a parte menos crível do filme, uma espécie de fantasia revanchista de “Django”, só que extremamente paz e amor.

Para quem já se incomoda com a insistência do racismo em existir nas mais diversas camadas da sociedade e que acompanha os desenvolvimentos atuais no mundo e principalmente nos Estados Unidos, “BlacKkKlansman” não oferece nada de novo além do já mencionado aulão. É isso que impede o filme de ser mais uma obra-prima do diretor. É importante notar que uma corrente bem sutil está presente no filme: a maneira em que as mulheres são tratadas pelos membros do Klan (a superioridade branca aparentemente não alça mulheres ao mesmo degrau).

Spike Lee já fez um dos trabalhos norte-americanos seminais sobre raça: “Faça a coisa certa”, que competiu pela Palma de Ouro em 1989. Após perder para “Sexo, mentiras e videotape”, de Steven Soderbergh, também norte-americano, Lee partiu da França esbravejando sua indignação de ter sido ignorado por um juri europeu que não teria conseguido compreender seu filme, e reservou seus comentários mais ácidos para Wim Wenders, presidente naquele ano.

Curiosamente, “BlacKkKlansman” tem seus momentos mais agressivos no início e no final do filme, descolados da trama principal. No primeiro, Alec Baldwin interpreta um senhor racista do meio do século 20 que está filmando um discurso inflamatório contra negros. No segundo, aparecem cenas da recente manifestação em Charlottesville, e a defesa pelo presidente americano Donald Trump dos participantes nazistas. A mensagem é clara: o racismo apresentado num contexto dos anos 70 permanece fixo na sociedade americana mesmo após 40 anos de progresso racial. Um dos personagens centrais do filme é David Duke (Topher Grace), até hoje presidente da KKK e admirador de Trump.

Pois se “Faça a Coisa Certa” foi controverso e agressivo demais, “BlacKkKlansman” é um filme professorial demais para se perpetuar na memória histórica cinematográfica. Talvez por se tratar de um momento importante e necessário para se lançar um filme com estes temas, Lee tenha feito questão de uma linguagem didática e clara, a fim de aumentar o apelo e a digestão de sua mensagem. Afinal, quem já conseguiu seu lugar no panteão pode tudo.

Avaliação: Bom (3 estrelas)

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