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A cidade que respira cimento: Fercal tem ar impuro em 40% do ano

Região administrativa com 8,5 mil habitantes é mais poluída que a Rodoviária do Plano Piloto, por onde passam 700 mil pessoas por dia

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
fercal cimento fabrica  saude
1 de 1 fercal cimento fabrica saude - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Roberita Pereira da Silva montou uma verdadeira operação de guerra para combater um inimigo que por duas vezes quase tirou a vida dela: a poeira. Asmática, a dona de casa de 38 anos tem a região onde mora como a principal causadora do agravamento da doença. Levantamento do Instituto Brasília Ambiental (Ibram) mostra que a Fercal é a cidade com a pior qualidade do ar do Distrito Federal. Dos 12 meses de 2019, em pelo menos cinco a região administrativa apresentou poluição atmosférica avaliada como inadequada.

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“Para ter uma noite minimamente tranquila, tenho de ligar o umidificador, tomar Alenia e colocar toalhas molhadas e baldes d’água em volta da cama. Mesmo assim, não é fácil”, conta Roberita Pereira

Em julho, por exemplo, a concentração de partículas totais em suspensão (PTS) na Fercal chegou a bater a casa dos 444 microgramas por metro cúbico, e foi considerada “muito ruim”. Uma atmosfera em boas condições para a respiração humana não pode ultrapassar 80 microgramas. Portanto, em julho, o PTS da Fercal apresentou 455% de PTS a mais do que o aconselhável.

O período de seca na capital do país é aquele que mais castiga a comunidade onde 8,5 mil pessoas residem, segundo a última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad), feita pela Companhia de Planejamento (Codeplan). Em agosto, a qualidade do ar foi medida pelo Ibram como “ruim” em pelo menos dois períodos analisados distintos.

Em junho, a quantidade de partículas suspensas também mostrou-se bem acima do aconselhável, a exemplo de abril, quando o oxigênio na localidade não conseguiu em nenhum dia vencer a avaliação de “regular”.

Exploração de minas

As noites costumam ser mais severas com a saúde de Roberita. A casa dela fica no bairro Queima Lençol, às margens da DF-205 e a poucos metros de uma área de exploração de minas e de duas gigantes produtoras de cimento: a Ciplan e a Votorantim. A fabricação em larga escala costuma levar parte do pó do principal material usado em obras às casas vizinhas.

“Já tive crises asmáticas gravíssimas de tanto respirar essa poeira envenenada. Para ter uma noite minimamente tranquila, tenho de ligar o umidificador, tomar Alenia [indicado para tratamento de asma] e colocar toalhas molhadas e baldes d’água em volta da cama. Mesmo assim, não é fácil”, conta a dona de casa.

Bem perto dali, em uma rua sem asfalto, reside o aposentado José de Souza da Silva, 84 anos. Em dias de estiagem, a tosse seca e a dificuldade de respirar atrapalham até a caminhada. “Fico sentado, sem forças”, narra. A fim de minimizar o inconveniente, ele adaptou o quarto com mosquiteiro de cama, porta de madeira – que retém mais a poeira do que a de alumínio – e pelo menos três camadas de tecido na janela. “É uma poeira carregada de cimento, dá pra sentir rasgando a narina.”

 

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José de Souza da Silva instalou mosquiteira sobre a cama para amenizar a poeira
Pior que a Rodoviária

O relatório de análise do ar do Ibram deixa a Fercal em situação de alerta quando o oxigênio da cidade é comparado com outros lugares com intensa circulação de veículos.

Na estação de monitoramento do órgão ambiental instalada na Rodoviária do Plano Piloto, por onde passam cerca de 700 mil pessoas por dia, somente no mês de janeiro de 2019, a qualidade do ar foi classificada como “ruim”. Ou seja, com 191 mil linhas e 850 ônibus em circulação diuturnamente, o local, ainda assim, é menos poluído do que a Fercal, abastecida por apenas oito linhas e 16 coletivos por dia.

O ar tóxico da Fercal afeta não só a saúde humana, mas também impõe dificuldades aos negócios. Funcionárias de um salão de beleza em uma das ruas principais da RA, Elaine Cristina Lima, 31, e Adriana dos Santos Pereira, 27, perderam as contas de quantas clientes deixaram de atender na estação em que há carência de chuva.

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“Tem muita gente que gosta do nosso trabalho, mas deixa de vir quando fica muito tempo sem chover, porque passa mal com essa poeira”, diz Elaine. “Fora que é desagradável a pessoa sair daqui toda arrumada e andar nessa cerração de poeira misturada com cimento que fica pairando no ar”, complementa Adriana.

Sem conseguir ver seu pequeno comércio prosperar, Claudionor Vaz da Silva, 65 anos, pensa em fechar o estabelecimento, situado em uma avenida sem pavimentação. Por conta própria, ele construiu dois quebra-molas na rua para que os veículos passem mais devagar e não levantem tanta poeira.

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Claudionor Vaz da Silva pensa em passar o ponto comercial em função da poeira misturada com cimento

Zelita dos Santos Moraes, 76 anos, mora na região há mais de 30 anos, muito antes de a área ser urbanizada. A idade avançada prolonga as crises de bronquite e em períodos mais secos ela costuma passar parte do dia com máscaras e bombinhas de ar.

“Já tive que ser levada às pressas para o pronto-socorro. A gente tenta amenizar, mas tem dia que fica quase impossível puxar o ar.

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Zelita dos Santos não se separa da bombinha para minimizar as crises
Filtros

Professor da Faculdade de Mobilidade e Meio Ambiente da Universidade de Brasília (UnB), Augusto César Mendonça Brasil diz que, no melhor dos mundos, o ideal seria que não existisse zonas urbanizadas tão perto de fábricas produtoras do produto à base de argila e calcário.

“Como sabemos que tal medida hoje é praticamente inviável por diversos aspectos, o ideal seria que essas indústrias instalassem filtros a fim de reduzir a emissão de material particulado na atmosfera”, defende.

O especialista ainda destaca outros efeitos da excessiva quantidade de partículas inapropriadas no ar da região administrativa com a menor renda per capita do DF – por mês, cada habitante recebe, em média, R$ 625,64. “Além das conhecidas consequências à saúde humana, principalmente com aumento de internações por problemas respiratórios e cardíacos, a alta concentração de particulados causa degradação em monumentos e patrimônios histórico e cultural.”

O que dizem as empresas

Em nota, a Votorantim Cimentos ressaltou que a fábrica “segue as normas legais em relação ao meio ambiente e controle de emissões, com constantes medições e relatórios disponíveis e apresentados periodicamente aos órgãos competentes”.

No texto, a empresa ainda garante realizar “investimentos em eficiência operacional e possui um moderno sistema de controle de emissões atmosféricas, composto por filtros eletrostáticos e de mangas que garantem a retenção de particulados dentro da legislação vigente”.

Também procurada, a Ciplan ressaltou que os “últimos investimentos permitiram atualizar os sistemas de filtros dos gases das chaminés para a tecnologia de mangas filtrantes, a mais moderna disponível no mercado”.

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De acordo com a empresa, a cada 8 segundos são feitas coletas de medições de gases particulados, o que pode ser acompanhado em tempo real pelo Ibram. A Ciplan ainda destacou manter vias sempre úmidas na área da mineração e que “um caminhão-pipa está rotineiramente passando na principal via de acesso à região e molhando a pista para a redução de poeiras”, ressalta.

O Instituto Brasília Ambiental destacou, também em nota, que monitora e fiscaliza periodicamente as indústrias de cimento da região, para que elas atendam aos índices estabelecidos pelas normas. “Essa atividade produz uma emissão de resíduo, mas tudo é controlado pelo Instituto”, ressalta, acrescentando que todas as unidades possuem licenciamento ambiental.

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