Precisamos de um feminismo que inclua os homens

Incluir os homens no diálogo é um sinal de maturidade e evolução do pensamento feminista, como nos mostra Bell Hooks

Nana Queiroz
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Clarice Lispector disse, certa vez, numa coluna que tinha no Jornal do Brasil, que escrever era vender um pedaço da alma. Concordo tanto que não sei escrever de outro jeito. Talvez devesse vir aqui teorizar sobre equidade de gênero, mas só sei sair ofertando pedacinhos do meu espírito. E aqui vai o mais recente: não sei conceber uma teoria feminista sem os homens.

Segredo mais íntimo: se alguém tira o componente “homem” da equação, perco o interesse no assunto. Isso porque adoro os homens. Amo a diferença que eles me apresentam, como eles me mostram meus “lados masculinos”, e nas figuras de alguns homens específicos: meus três irmãos, meu pai, meu marido, meu melhor amigo. Não me leve a mal: amo-os com a mesma intensidade com que amo as mulheres e as pessoas que não se encaixam nem do lado de lá nem no de cá do espectro.

E perco o interesse pelo feminismo sem homens da mesma forma com que perco o interesse por todas as outras teorias que esqueceram das mulheres. Como qualquer coisa interessante na vida pode excluir 50% da população mundial?

Eu, que fui iniciada no feminismo pela internet, tinha uma vergonha atroz de sentir isso. E, por ser iniciada nas redes sociais, tinha mesmo vergonha de pensar por conta própria. (Aliás, se me permite a digressão, a melhor coisa que você, pessoa inteligente que me lê, pode fazer é sair da internet imediatamente e ir ler um livro, a internet é um curral de gente que fala mais do que lê e, assim, fala um tanto injusto de bobagens rasas.)

 

Mas nesta semana fui salva por Bell Hooks. Ela é uma das mais respeitadas feministas negras americanas da atualidade e me salvou da superficialidade odiosa da internet. Bell Hooks me disse que incluir os homens no diálogo é um sinal de maturidade e evolução do pensamento feminista. Em seu livro “Feminism is for everybody” (Feminismo é para todos) ela me falou — foi um encontro tão íntimo que me sinto segura de que escreveu apenas para mim — exatamente assim:

“Quando o feminismo contemporâneo começou a se organizar, havia uma forte ala anti-homens. Mulheres heterossexuais que se juntavam ao movimento vinham de relacionamentos com homens que eram cruéis, nada gentis, violentos e infiéis. Muitos deles eram pensadores radicais que (…) falavam em defesa dos trabalhadores, dos pobres, contra o racismo. Mas quando se tratava da questão de gênero, eram tão machistas quanto os homens conservadores. (…) E as mulheres usavam essa raiva como catalisador de sua luta. Mas conforme o movimento e o pensamento feminista progrediam, feministas sábias perceberam que o problema não eram os homens, mas o patriarcado, o machismo e a dominação masculina.”

Olha que coisa preciosa: assim como eu, Bell Hooks ficava muito chateada que ganhassem mais voz nas mídias as mulheres que se opõem ao diálogo com os homens — mesmo que elas sejam a minoria. Por que será do interesse da cultura majoritária pintar o retrato das feministas como odiadoras de homens nada razoáveis?

E Bell, que é educadora, defendia que o feminismo tinha um dever pedagógico para com o mundo e isso, sim, incluía os homens. “Garotos precisam de uma autoestima saudável. Eles precisam de amor. E uma política feminista sábia e amável pode oferecer a única estrutura que salvará as suas vidas.”

Como Bell, que agora é minha íntima e nova teórica feminista favorita, eu sou louca de amores pelos homens. Mais: acredito que o feminismo está aí, também, para libertá-los de uma série de amarras horríveis.

Não estou falando apenas da proibição de chorar, ser sensível — que os levam a doenças psicológicas e ao suicídio como qualquer ser humano que nega uma parte essencial de si — mas de “regras da macheza” que são morte pura. Como o receio de fazer exame de próstata, que mata um homem a cada 40 minutos. Ou a ideia de que esfaquear alguém num bar (ou ser esfaqueado por) te faz “mais homem”.

Mas a verdade mesmo é que defendo um feminismo que inclua os homens porque amo um pouquinho mais as mulheres. E acredito que elas merecem mais do que uma teoria da exclusão — que foi exatamente o que os homens fizeram por dois milênios. E acho que elas merecem uma pedagogia da libertação, como a de Bell Hooks e de Paulo Freire, e não uma ditadura dos silêncios de quem tem este ou aquele órgão no meio das pernas.

O que os homens fizeram e fazem define quem eles são; o que nós faremos com nosso movimento, definirá quem nós somos.

Eu desejo e sonho com um feminismo que inclua os homens e que eles saibam ser incluídos sem reproduzir suas estruturas de dominação, que saibam ouvir e ser comandados por mulheres quando cabe à circunstância. Mas que também tenham voz e que sua voz seja de quem está cansado de “ser café com leite”, de quem não precisa de regrinhas especiais para se dar bem no jogo da vida.

É um caminho mais árduo, mais longo e exige uma paciência tremenda. Mas é o único eficaz. Ou vamos colocar presos todos os homens após eles violarem a Lei Maria da Penha? Ou só vamos ouvir eles falarem do que acham do feminismo no banco dos réus dos julgamentos depois que já se tornaram agressores? Não seria mais eficiente incluir e dialogar para implantar o sábio ditado do “prevenir em vez de remediar”?

Eu acredito nos homens. E acredito nas mulheres ainda mais. Tenho fé no poder da humanidade de debater este tema sem um ódio aterrador. Eu só não acredito que as redes sociais são o palco adequado para este debate urgente acontecer. Não ainda. Espero estar errada. Mas, por ora, continuo conversando com Bell Hooks, que não me humilha quando discordamos. Obrigada, Bell!

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