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Pelé visto por um idiota da objetividade

Uma matéria do jornal Le Monde avacalha Pelé e o coloca até como cúmplice passivo do general Médici. A linha justa da esquerda é estreita

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Galvão Bueno homenageia Pelé com icônica foto do tetracampeonato mundial - Metrópoles
1 de 1 Galvão Bueno homenageia Pelé com icônica foto do tetracampeonato mundial - Metrópoles - Foto: Reprodução/Twitter

O correspondente do jornal francês Le Monde avacalhou Pelé, a pretexto de analisar as suas “ambiguidades políticas”. Na matéria assinada por ele, Pelé aparece como “alvo de intensas críticas no Brasil”, por causa das suas “posições controversas que adotou durante e depois da sua carreira de jogador. Entre passividade, deslizes, conservadorismo e indiferença diante das grandes questões da sociedade do seu país”. As “intensas críticas” vieram de três dos quatro desconhecidos ouvidos pelo jornalista.

O correspondente do Monde praticamente classifica Pelé como cúmplice passivo dos crimes do general Emílio Garrastazu Médici, por ele ter ido a Brasília, para levantar a Copa do Mundo recém-conquistada em 1970, ao lado do então general-presidente. “Pelé não protesta e se torna sem pestanejar a face radiante de uma ditadura sinistra”, escreve o jornalista. Ele dá uma canja ao morto, contudo, ao reproduzir o que Pelé disse num documentário sobre a sua vida, “entregando-se a alguns arrependimentos”: “Se eu dissesse que não sabia (que a tortura existia), eu mentiria”. Ufa, bom saber que Pelé não pôs guerrilheiro no pau-de-arara.

A canja é rala. O correspondente do Monde vai adiante e o acusa de desconfiar da democracia, por ter dito que “os brasileiros não sabem votar”, durante a ditadura militar. Na verdade, o que ele afirmou, em entrevista dada à Folha de S.Paulo, em 1977, foi: “O povo brasileiro ainda não está em condições de votar por falta de prática, por falta de educação e ainda porque se vota, em geral, mais por amizade nos candidatos”.

Em 1995, quando era ministro do Esporte do governo de Fernando Henrique Cardoso (definido pelo correspondente do Monde como “de centro-direita”, coitado de FHC), Pelé explicou a Jô Soares que o quis dizer com a frase foi que “o brasileiro, se quisesse reivindicar os seus direitos, tinha que tentar votar direito, não em Cacareco”. A explicação, por mais desajeitada que pareça, teria de constar da matéria, acho.

Não poderia faltar, obviamente, a carta racial nesse “j’accuse”. Para o correspondente do Monde, ao longo da sua trajetória, Pelé “sempre relativizará a realidade do racismo” e “alguns não hesitarão a tratá-lo de ‘Negro Sim Sinhô’, submisso e servil, pronto a tudo para atrair as boas graças da elite branca. Uma realidade que foi reforçada por uma atualidade recente. No fim de 2020, quando a pandemia de Covid-19 assolava o Brasil, Pelé autografou uma camisa do Santos para o presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, habituado a comentários racistas”. O que jornalista não sabe, nem nunca procurou saber é que o presidente da República queria encontrar-se com o ex-jogador e que a foto com a camisa autografada foi a forma que Pelé encontrou para driblá-lo.

Outro pecado do ídolo já não tão ídolo: ser um “milionário desinibido”, com “visões ultraliberais e seu gosto pelo que brilha” (há algo de racista nessa crítica ou é impressão minha?). Também fez propaganda demais, assim não dá. Quanto à Lei Pelé, ela teria “aberto a estrada para a especulação no mercado de jogadores do futebol brasileiro”. Alguém precisa avisar Juca Kfouri de que a culpa do desvirtuamento da Lei Pelé é de Pelé, não da cartolagem e dos políticos.

Para arrematar, o jornalista escreve: “Egoísta e narcisista, ‘O rei’ se crê intocável. Errado. O seu povo o admira, está certo, mas o ama cada vez menos. Muitos preferem o seu antigo rival da seleção, o atacante Mané Garrincha, driblador de gênio, morto em 1983 na pobreza e no álcool…Outros admiram o ‘doutor’ Sócrates, ‘Che Guevara’ do futebol, líder rebelde do Corinthians de São Paulo e militante infatigável da democracia sob a ditadura”. Se bem entendi, para ser amado, Pelé deveria ter morrido na pobreza e no álcool ou ter sido um Che Guevara. A linha justa da esquerda é muito estreita.

Paro por aqui. A memória de Pelé não precisa de ninguém que a lustre. Ninguém é santo, mas raríssimos são tão geniais no que fazem, a ponto de se transformarem em símbolos de um país.

Eu só gostaria de sugerir ao correspondente do Monde que se informasse sobre a expressão “idiota da objetividade”, cunhada por Nelson Rodrigues. Talvez você se reconheça como tal, rapaz. 

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