metropoles.com

Cinema de Brasília abre espaço para os debates da ficção científica

Dois filmes exibidos durante a 50ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro resgataram o legado de uma HQ sci-fi dos anos 50

atualizado

Compartilhar notícia

FOTO_GUSTAVO_SERRATE
A-Margem-do-Universo-1-Foto-Gustavo-Serrate-1024×576
1 de 1 A-Margem-do-Universo-1-Foto-Gustavo-Serrate-1024×576 - Foto: FOTO_GUSTAVO_SERRATE

Em 1953, a revista “Weird Fantasy”, da revolucionária editora americana EC Comics, publicou uma história em quadrinhos que entrou para o anedotário da ficção-científica. Escrita e ilustrada por dois pesos pesados da época, o editor Al Feldstein e o ilustrador Joe Orlando, “Judgment Day” mostrava um astronauta vestindo um traje espacial completo. Ele visitava um planeta habitado por dois tipos de robôs: laranjas e azuis.

Tarlton (o astronauta terrestre) tem a missão de interrogar os robôs laranjas para descobrir se eles são ética e tecnologicamente avançados o suficiente para integrarem certa “República Galáctica”, da qual os humanos fazem parte.

Tudo parece estar nos conformes. Os robôs laranjas dispõem de padrões de política, ética e tecnologia aceitáveis até então. Seus pares parecem estar satisfeitos com a vida e há ordem social. Porém, Tarlton começa a perceber que os robôs laranjas escondem ostensivamente os robôs azuis e decide fazer uma vistoria na “cidade azul”, o gueto pobre e marginalizado onde eles residem. A chocante descoberta do astronauta é a de que, além de não haver razão histórica para que os robôs azuis sejam “apartados”, a única diferença entre eles é exclusivamente a cor.


E é aí que vem o final antológico. Tarlton decide retornar à cidade laranja e vetar a associação desse planeta à República Galáctica. No último quadro, já no espaço e dentro de sua nave, ele finalmente remove o capacete e revela ser um homem negro.

Essa história foi publicada cerca de 10 anos antes de os direitos civis nos Estados Unidos e um apartheid de leis “Jim Crow” separar, institucionalmente, negros e brancos naquele país. Em 1954, um juiz, supostamente amparado pelo recém-criado código de censura e autorregulação para os quadrinhos, ligou para os editores da EC para obrigá-los a “embranquecer” o personagem no quadro final, sob ameaça de processo. O magistrado recebeu de volta um sonoro “fuck you” pelo telefone.


“Judgment Day” é significativa por razões óbvias, mas a ficção-científica, em geral, sempre foi domínio de homens brancos e de um pensamento da elite. Utopias futuristas como as de Arthur C. Clarke estão afinadas com agendas de desenvolvimento de um pensamento eurocêntrico.

É como se, por se tratar de finas tecnologias e sociedades “avançadas”, o tema fosse exclusividade de quem detém esses atributos no momento presente. No cinema, o gênero, na maioria das vezes, esteve associado ao entretenimento barato (“space opera”). O escritor Phillip K. Dick e o cineasta Neil Blomkamp, que inserem a sci-fi no campo da ciência social, são exceções à regra.


Sci-Fi social e político: feito no DF
Pulamos agora para 2017, 50ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Fortemente engajado em causas sociais e diverso em inúmeros sentidos, o evento entrou para a história não apenas por essa tomada de consciência, mas pela tomada de assalto, por parte de um pensamento social, de gêneros tradicionalmente hollywoodianos (cinema-espetáculo), como ocorreu com o horror em “Nó do diabo”.

Duas produções me chamaram a atenção por utilizarem a ficção-científica como alicerce para alcançar questões sociais e políticas contemporâneas, tornando o gênero uma máquina de processamento alegórico sobre os sombrios tempos atuais no Brasil.

O primeiro deles foi, é claro, “Era Uma Vez Brasília”, o aguardadíssimo novo longa-metragem do cineasta ceilandense Adirley Queirós, que já havia flertado com esse tipo de experimento no premiado “Branco Sai, Preto Fica” (2014). O novo filme tem como enredo (um fiapo de enredo, diga-se) a história de um alienígena exilado de seu planeta que tem como chance de redenção assassinar o presidente Juscelino Kubitschek antes da inauguração de Brasília. A viagem no tempo dá errado e o viajante acaba caindo no ano de 2016, em Ceilândia, após o impeachment de Dilma Rousseff.

FOTO_JOANA_PIMENTA
Eu digo fiapo de enredo porque isso não tem grande importância em “Era Uma Vez Brasília”. A coerência em filmes sci-fi, donos de suas próprias leis internas, tem pouca serventia para se compreender a proposta de Adirley, que chega a chamar o filme de documentário.

Mais do que uma ficção-científica, esse filme é uma performance alegórica que procura, em primeiro lugar, situar o Brasil atual como terra arrasada, paisagem “cyberpunk de quebrada” e total anticlímax histórico e político. Daí a imensa lassidão da película, quase no limite da suportabilidade (citando talvez o lentíssimo “Era Uma Vez no Oeste”, de Sergio Leone).

Em segundo lugar, a metáfora de Adirley coloca a periferia como uma possível tropa de choque rebelde e “alienígena” aos centros de poder, única forma de resistência a um país que parece já ter se tornado uma distopia pós-apocalíptica.


A metáfora política de “Era Uma Vez Brasília”, no entanto, me parece se limitar a esse lastro. Um discurso da Dilma no começo, um do Temer no final, com sucessivas performances estetizadas no meio. Não sobra muito mais que isso. Adirley erige cenas quase avulsas, como se cada momento fosse um grande achado cinematográfico, com esplêndidas direção de fotografia e arte.

Muito antinarrativo, “Era Uma Vez Brasília” seria melhor lido em chave surrealista, como se fosse um tipo sombrio de Jodorowsky da Ceilândia, e o filme pudesse ser percebido mais como inconsciente degenerado dos paradoxos do Brasil do que como uma metáfora precisa do governo Temer.

A questão é que Adirley busca trazer elementos de um cinema “erudito”, como os do malaio Tsai Ming-Liang ou do português Pedro Costa, fazendo a intenção social desta ficção-científica se tornar menos impressionante do que seu virtuosismo estético.

Depositar tanta credibilidade a esse aspecto performativo do cinema contemporâneo deixa o filme de certa maneira atônito ou lacônico. Querendo dizer tudo, ele se cala em seu hermetismo. Querendo fazer um “Terra em Transe” dos nossos tempos, Adirley pode ter caído mais na armadilha do barroquismo de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”.

FOTO_JOANA_PIMENTA
A ousadia da produção e o arrojo de certas cenas nos afetam profundamente (a cena do carro pegando fogo parece uma legítima homenagem a Tarkovsky em “O Espelho”), mas creio que o resultado do filme nos leva a uma leitura diferente do pretendido pelo seu diretor.
A segunda produção, bem mais modesta, esteve na Mostra Brasília e é muito bem dirigida por Tiago Esmeraldo e roteirizada por Fáuston da Silva, um talentoso e jovem cineasta brasiliense cuja carreira venho acompanhando há anos. “À Margem do Universo” mostra dois alienígenas (humanos do futuro?) desembarcando em um planeta para uma missão arqueológica e de reconhecimento.

Eles são comandados por uma inteligência artificial que limita o seu livre-arbítrio, e a história do filme será a da tomada de consciência destes seres “marginais” para o poder de escolha política e existencial dos indivíduos.

“À Margem do Universo” é lindamente filmado na Chapada dos Veadeiros e fotografado de maneira enigmática e onírica, com uma proposta existencial à Kubrick e (novamente) Tarkovsky (guardadas as proporções). Chama a atenção o protagonismo e a ótima atuação da atriz camaronesa Petra Sunjo, que faz a astronauta principal, lembrando o Tarlton de “Judgment Day”.

A diversidade e a inversão de protagonismos são marcas do filme, que se propõe a algo não tão disperso e fragmentário quanto “Era Uma Vez Brasília”. Em “À Margem do Universo”, o aspecto pop da ficção-científica aparece não de maneira instrumental, mas está integrado ao propósito do filme, que se revela consciente e introspectivo ao mesmo tempo.

FOTO_GUSTAVO_SERRATE
Além disso, a própria língua dos astronautas chama a atenção para como a fala social dos marginalizados é tratada como “alienígena” para aqueles que detêm a ordem do discurso: eles falam em suruwaha, idioma indígena brasileiro com menos de 100 falantes no mundo e que corre sério risco de extinção.

Curto, um tanto precário, mas profundamente humano e inteligente, esse curta-metragem se alinha a “Era Uma Vez Brasília” no sentido de que procura pensar transversalmente diversos aspectos de complexidades culturais, políticas e tecnológicas por meio do único gênero que talvez seja capaz de dar conta de tudo isso.

O legado de Tarlton e de “Judgment Day” deságua em Brasília em 2017 justamente naquilo que aqueles que abordam com ousadia o gênero entenderam desde o começo: a ficção-científica não serve para nos dar uma visão do futuro, mas, sim, uma leitura do presente.

FOTO_GUSTAVO_SERRATE

Compartilhar notícia