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Épico pós-apocalíptico italiano traduz sensibilidade contemporânea

A Terra dos Filhos, publicado pelo artista Gipi, propõe uma reflexão sobre a palavra escrita

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A palavra escrita define nossa maneira de pensar, de registrar a história e mesmo a linearidade dos propósitos na vida. Seja na inscrição místico-sagrada do tetragrama judaico (YHWA), nos mandamentos escritos em pedra para Moisés no Velho Testamento, ou nos testemunhos dos evangelistas ao narrar as histórias e os ensinamentos de Cristo, o texto escrito é uma mídia que moldou ideologias e deu sentido ao impulso da razão humana. Sua forma técnica (a partir da imprensa no século XV) organizou todos os desígnios modernos. Trouxe atualidade à filosofia, criou a ciência.

Escrevo esse preâmbulo para nos situarmos na importância da reflexão sobre a palavra escrita proposta pelo romance gráfico A Terra dos Filhos, publicado pelo artista italiano Gipi em 2016 e que sai agora no Brasil pela editora Veneta. Estamos num ambiente pós-apocalíptico no qual dois irmãos criados em meio à barbárie têm como missão descobrir o que está escrito no diário de seu pai. A inscrição da palavra e a ausência de um conhecimento sobre ela modulam um mundo ignorante e monstruoso, centrado em regras toscas, animalescas. Um psiquismo degenerado se instaura. A busca pelo diário se metaforiza na busca pela recuperação da razão.

A Terra dos Filhos é uma HQ vigorosa, estilizada numa história que ora se revela seca e minimal, ora se abre para sensíveis momentos de inflexão poética. Como já comentei por aqui, não sou exatamente um fã de narrativas pós-apocalípticas. Porém, dou o braço a torcer quando elas se prestam a calibrar os limites da ética e do comportamento humanos, iluminando o caminho para representar a falência completa da civilização. É o caso aqui.

Gipi (Gian Alfonso Pacinotti), ilustrador, quadrinista e cineasta, é um artista de cabeça contemporânea conhecido por misturar técnicas e mídias, sempre dentro de um propósito que unifique, em todos esses materiais, suas indagações sinistras sobre a humanidade. Seu filme L’Ultimo Terrestre chegou a ser exibido no Festival de Veneza.

Mais conhecido por seu trabalho em aquarela, aqui sua estilística é reduzida a um vigoroso nanquim cheio de hachuras e sombreado expressionista, tudo em preto e branco. A beleza dos grandes quadros, cheios de silêncio e poesia, lembra o que o brasileiro Lelis fez no sombrio Goela Negra. O sentido semialegórico da narrativa se aproxima da obra máxima Três Sombras, do francês Cyril Pedrosa.

Curiosamente, esse tipo de história redentora em cenários devastados por hecatombes tem se tornado fruto de investidas reiteradas nos quadrinhos. Ler A Terra dos Filhos me levou de volta, por exemplo, a Velho Logan, hoje a já clássica história de Mark Millar ilustrada por Steve McNiven. Aqui, um Wolverine muito envelhecido, diante de um mundo brutal, sem leis e autoritário (onde os super-heróis morreram), decide aposentar as garras e se resignar a obedecer ao jugo de herdeiros debiloides do Hulk. Marcada por ressentimento e medo da liberdade, essa HQ (que inclusive inspirou o filme Logan) se assemelha muito a A Terra dos Filhos, por buscar desenterrar um fio de humanidade na aridez do futuro.

Gipi nos entrega, portanto, uma narrativa com riqueza de signos e camadas. Como qualquer sci-fi pessimista, esse é também um romance gráfico sobre o presente. É impossível não notar a antipatia do autor diante da geração millennial, que, aqui, herda o futuro com psicopatia e uma visão de mundo imediatista e superficial. Ao mesmo tempo, o papel da mulher para instituir um reencantamento desse mundo destroçado leva a uma analogia com o estado das coisas para o qual a cultura patriarcal está nos conduzindo. Nas entrelinhas da distopia de A Terra dos Filhos, há muito das nossas questões mais urgentes.

No final da história, ficamos finalmente sabendo o nome de um dos protagonistas. Esse evento não ocorre por acaso. Nomear é instaurar a primeira palavra, é registrar a história. Lévi-Strauss situava esse ato como o primeiro da socialização, a normatização, a abertura para a lei. No final das contas, uma pista sobre como a palavra rege a ordem social, e os perigos de seu aprisionamento ou até de sua completa desaparição. Sem zumbis e mergulhada em poesia e erudição, esta narrativa pós-apocalíptica é um exemplo perfeito de quando os temas da cultura pop chegam ao estado da arte.

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