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A parábola do filho pródigo, segundo Christus Nóbrega

Artista plástico buscou referências nas histórias da mãe e da avó para formar nova coleção

atualizado

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto de abre - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Christus Nóbrega já palmilhou o interior da Paraíba em idas e vindas. Conheceu a cadeia produtiva do couro em Cabaceiras, no Planalto da Borborema, onde são produzidos de selas para cavalos até calçados e vestimentas. Acompanhou a mineração de turmalina em Patos e a fabricação de bruxinhas de pano em Sousa. Percorreu assentamentos nos quais trabalhadores rurais sem-terra usam borracha para fazer estilingues. E até publicou um livro sobre sobre a renda renascença e as artesãs da região de Curimataú.

Todas essas viagens foram feitas ao longo dos primeiros anos da década passada. Época em que Christus trabalhava numa parceria da Universidade Federal da Paraíba com o governo do estado para pesquisar e mapear as chamadas “tecnologias apropriadas”. Ou seja, as técnicas ancestrais do povo de um lugar. Processos aprendidos e passados adiante por gerações e gerações, elaborados a partir de produtos naturais para vencer as necessidades específicas de cada região.

Foram essas viagens como etnógrafo que, pela primeira vez, levaram Christus até Chã dos Pereiras, vilarejo do município de Ingá, região de Campina Grande. Eis o berço nordestino da chamada renda labirinto, uma técnica trazida da Europa pelos portugueses e que acabou por prosperar no coração do semiárido paraibano.

Após esse primeiro contato, Christus Nóbrega voltaria para Chã dos Pereiras três vezes nestes últimos três anos. Ele já se via movido por um interesse pessoal e artístico.

Nascido e criado na urbanidade de João Pessoa, Christus sabia que sua avó era de Chã dos Pereiras, mas nunca se atentara muito para esse fato. Apenas após a primeira viagem, ele foi desenredando um episódio de sua história familiar ocorrido nos anos 1950 e 1960.

Iara, a mãe, contou que Alaíde, a avó, precisou recorrer à renda labirinto para sustentar a família quando a pensão que recebia do governo começou a faltar. Christus então percebeu estar bem próximo de um aspecto social que já lhe chamara a atenção como pesquisador.

“O trabalho da renda, que é essencialmente feminino, surge como alternativa à agricultura durante os longos meses de estiagem”, explica Christus. “Nasce como uma estratégia de beleza para tentar esconder a dor, um floreio para ocultar a tragédia da seca.”

Se ele contasse a história de sua família, portanto, estaria também contando a de muitas outras. Foi esse sentimento que o levou a buscar em antigos álbuns de fotografias as imagens que hoje podemos ver na mostra “Labirinto”, que segue em cartaz na Referência Galeria de Arte até 5 de agosto, sob curadoria de Cinara Barbosa.

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Visitando o ateliê de Christus Nóbrega, na comercial da 206 Norte, vamos recolhendo indícios e fragmentos do processo que conduziu o artista em seu “Labirinto”. As fotografias, que juntou nos álbuns da mãe e das tias, ainda agora estão coladas nas pareces, funcionando como esboços, mapas para as peças que ele criou.

Christus ampliou digitalmente as fotografias e as imprimiu, como se fossem estampas, sobre peças de linho, exatamente o mesmo material que as rendeiras da Paraíba usam em seus trabalhos. Mas, ao contrário delas, Christus ainda não sabia como fazer a sua parte…

Para imprimir as fotografias sobre o tecido, ele lançou mão da mesma impressora HP que já o acompanhara em outros tantos projetos. Desta feita, no entanto, o processo de impressão não foi exatamente dos mais convencionais. Volta e meia, a máquina engasgava com pó do tecido. Mais de uma vez, a assistência técnica precisou ser acionada — e Christus teve que explicar como um fio de algodão foi parar dentro da engrenagem.

Foram três anos de exercícios de impressão, nesse esquema de seguidas tentativas e diferentes erros, até Christus entender como fazer funcionar direitinho e se dar por satisfeito com o resultado técnico. (Entre outras manhas, ele descobriu, por exemplo, que o tecido de linho deve ser umedecido antes de entrar na impressora. Levemente umedecido. Não muito, senão a tinta não pega nele.)

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A cada verão, nos últimos três anos, Christus voltou para a Paraíba carregando uma fornada de tecido quentinho, recém-saído de sua impressora high tech. E ali as rendeiras lhe emprestavam um tanto de sua arte ancestral. Assim…

Primeiro, trabalham as riscadeiras. Com um pedaço de giz, marcam no tecido quais partes serão submetidas ao chamado desmantelamento. Quando, empunhando uma gilete, artesãs cortam a trama original do tecido. Em seguida, no estágio conhecido como preenchimento, surge o ato de rendar propriamente dito, quase sempre com motivos florais. Então, os bordados são torcidos na mão de tal maneira que os fios cortados e os rendados não corram mais e o desenho se estabilize. Por fim, a peça é lavada, engomada e colocada para secar.

Há séculos, a técnica de fabricação da renda labirinto funciona desse jeito. Mas apenas lentamente Christus, mais uma vez à base de tentativa e erro, foi entendendo o que as rendeiras poderiam fazer para ele.

“Sabe quando você se machuca e fica aquela casquinha na pele? Aos poucos, fui percebendo que o labirinto podia funcionar como feridas. Entalhes que dão um certo aspecto orgânico ao que é artefato”, ele compara. “Por isso quis deixar a tecelagem incompleta. O fio como metáfora da dor, da ruptura, do esfacelamento. Algo muito familiar à gente que vive na seca, que vê parentes partindo, os filhos buscando outros lugares para viver.”

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Christus Nóbrega gosta da mitologia do filho pródigo. Interpreta essa conhecida parábola como a história daquele jovem que viajou e viveu coisas novas para, no regresso à sua terra, ser recebido não como um reles aventureiro arrependido, e sim ser saudado como o portador de novidades.

Ele próprio, fica evidente agora, atuando como protagonista desta história de quem deixou a Paraíba para vir à capital federal completar seus estudos na Universidade de Brasília – e aqui tornar-se artista.

Como um filho pródigo, era recebido a cada verão em Chã dos Pereiras. “Penso que em toda comunidade há uma abertura para o nômade. Claro que a novidade muitas vezes desmantela o que está perene. Mas sem novidade alguma só pode haver a morte.”

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Christus também vem pensando na memória como um lugar de potência criativa. Nesse sentido, as viagens para a Paraíba e as incursões por antigos álbuns de fotografia foram a chance de reencontrar suas origens, e de escutar mais as histórias de sua mãe, sua avó.

Escutou muito, Christus. Escutou de um tanto que “Labirinto”, a mostra em cartaz na Referência, vem sendo anunciada pelo artista como o primeiro ato de uma narrativa. Ele pretende revelar mais fotografias e a elas agregar ainda alguns objetos e vídeos para formar mais adiante uma outra exposição, de maior envergadura.

E assim uma narrativa que já foi oral, graças ao filho pródigo, pode ser entendida a partir de agora também como um percurso poético.

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