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Viva Rubem Fonseca, que veio do ferro, do fogo, da Cidade Partida

Sem ele, eu não estaria escrevendo aqui. Não encontraria quem me desse valor, pela minha frieza, palavrões e dureza na vida

atualizado

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Gui Prímola/Metrópoles
Ilustração com Rubem Fonseca
1 de 1 Ilustração com Rubem Fonseca - Foto: Gui Prímola/Metrópoles

O menino era magro. Cara de quem tinha poucos amigos.
E tinha.

Era um tipo de Clint Eastwood da Zona Norte. Cara fechada, um jeito amargo. Botou uma Colt na cintura, óculos escuros, lá vai ele, dentro do Fusca. Orgulho da família, inspetor da Polícia Civil do Estado da Guanabara. Camisa bem passada, cabelo bem assentado com goma, as mulheres sentiam a água de colônia quando ele chegava, mas ele, sempre com aquela cara fechada, fazia as pessoas praticarem distanciamento social antes mesmo de existir coronavírus.

O Rio, em 1952, era o mundo possível praquele menino de 27 anos. Mais especialmente, a Zona Norte. O presidente era Getúlio, Lacerda o governador. O Rio, capital da República, e os ânimos estavam exaltados. A República, já nervosa naquele tempo.

Dali dois anos, Lacerda ia sofrer um atentado. E o velho, no Catete, ia meter uma bala no peito. Getúlio, o padrinho de casamento de Brizola, que vivia andando pela cidade, já que a essa altura era deputado federal pelo Rio Grande do Sul, e a “Brasília” da época era o Rio. O Centro, o Catete. O pau quebrava ali.

Mas ele não tinha nada a ver com isso.

– Não quero saber dessa merda.

Cuspiu no chão, e pisou no cigarro. Jogou o jornal dentro do Fusca, e entrou na vila Santa Genoveva, onde havia um corpo pendurado numa corda, dentro de uma cozinha.

Olhou. Um homem, aparentemente 50 anos, nu da cintura pra baixo.

– Deceparam ele, doutor.

Disse um fotógrafo, desses jornais que espreme e sai sangue.

Com uma cara de má vontade, entra na cena. Chegam os legistas. Toma nota de tudo, leva os relatórios debaixo do braço.

Odiava sair do escritório.

– Eu odeio sair do escritório. Essa merda. Essa porra. Meu negócio é aqui dentro, por que o Valdir faltou de novo?

– Mulher dele teve neném hoje, rapaz. Você, agora tu vê, tão novo, tão rabugento.

– Ele tá fazendo neném todo dia? Quer povoar Bangu? Faz um filho em cada bairro?

Ele era rabugento. Realista, melhor dizendo. Taurino, queridos. Taurino é foda.
E não dava pra ser respeitado, numa DP na Zona Norte, se não fosse. O sujeito tem que delimitar seu espaço.

Ficou anos indo e voltando do escritório. Uma noite, ficou até mais tarde. Usou a máquina de escrever nova, pra fazer um texto, pessoal. Semanas depois, mostrou pro delegado.

– Que porra é essa, cara? Tá cheio de palavrão isso aqui. Onde que você vai mostrar isso, a tua família sabe que você fala essas coisas aqui? Eu te prendo. Tu quer ser preso?

– Preso por falar palavrão?

– Rapaz, falar palavrão é uma coisa, você está é endemoniado. Você, escrevendo assim, é um perigo pra família.

– Perigo pra família, doutor. Perigo pra família é esse Esquadrão Le Coq que vocês querem montar.

– Inspetor, inspetor…cuidado com a boca.

E ele teve cuidado.

Depois de ver os rumos que a Polícia estava tomando, saiu pela porta da frente. Sujeito homem não manda recado. Ele não mandou. Nem reclamou de ninguém depois. Cuspiu no chão, de novo, apagou o cigarro, e foi trabalhar na companhia de eletricidade.

Guardava as folhas numa gaveta, em seu escritório, em casa. Lia à noite, fazia correções. Continuou afastado da política.

Viu Jânio Quadros entrar.
Viu Milton Le Coq, seu ex-colega de polícia, ser morto.
Viu Cara de Cavalo, assassino de Le Coq e amigo de Hélio Oiticica, ser morto.

Aliás, você não sabe, mas aquela ilustração Seja Marginal, Seja Herói, foi em homenagem ao Cara de Cavalo. Um sujeito da boemia. Vendedor de maconha e cafetão na Central do Brasil, morava no Morro do Esqueleto, que foi despejado pra construírem a Uerj em cima. Cara de Cavalo vivia de maconha e prostituição.

Oiticica, artista e boêmio, gostava da noite, da maconha, e das puta.
Subiu a Mangueira, porque disseram que, além disso tudo, ainda encontraria o samba.

Como diz Marcelo D2, em A Maldição do Samba

“O gringo
subiu o morro e bebeu cachaça,
fumou maconha e obteve a graça,
depois do samba sua vida nunca mais foi a mesma”

Hélio Oiticica. Subiu o morro, conheceu Cara de Cavalo. Ficaram amigos de maconha, de putas, e de samba. Hélio saía da Zona Sul para virar a noite com seu amigo do morro, e, juntos, foram carne e unha. A Zona Norte e a Zona Sul.

Cara de Cavalo matou Le Coq, delegado, em Vila Isabel. A polícia inteira foi atrás de Cara de Cavalo. Passaram ele.

Hélio entrou na casa onde ele estava morto, e viu o corpo caído.
Dessa imagem, sai o homem caído na ilustração, e a homenagem de Hélio ao seu amigo.

Seja Marginal,
Seja herói
.

Esse era o Rio, naquele tempo.

Um ano antes da ditadura, em 1963, ele leva seus escritos para um editor.

– Rapaz…você quem escreveu isso?
– Sim, porra. É meu isso aí.
– Quer que a gente publique?
– Tu acha que tem futuro?
– Futuro todo mundo tem, rapaz. Se é bom ou ruim, só o tempo dirá.
– Então publica.
– Tem um monte de palavrão aqui. E sangue pra caralho. Você é amargo, hein, jovem?

– Viu nada, amigo.
– Nome artístico.
– Hein?
– Nome, pro autor.
– Meu nome mesmo, porra.
– E qual seu nome?
– Rubem. Bota Rubem. Rubem Fonseca.

E foi pro prelo.
E foi pras cabeças.
E comeu Jabuti, e virou filme, TV, a porra toda.

E veio das ruas. Das ruas do Rio. Do ferro e fogo, das sombras, da Cidade Partida.
Nunca nos vimos, mas sem ele eu não estaria escrevendo aqui. Eu, que venho do morro, não encontraria quem me desse valor, pela minha frieza, palavrões e dureza na vida. Você quem abriu esse caminho, no Rio que não existe mais, e eu, num Rio que insiste em não morrer. Rubem veio desse Rio, que mudou muitas vezes, e obriga o escritor a virar noites. Mas o torna gigante.

Obrigado. E que seja linda a tua passagem.
Viva Rubem Fonseca.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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