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Programa espacial brasileiro foi alvo de espionagem pela CIA

Documentos desclassificados pelo governo dos EUA mostram análises de fotos aéreas de fábricas, lançamento de foguetes e campo de teste

atualizado

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LINDAURO GOMES/ESTADÃO CONTEÚDO
Centro de Lançamento de Alcântara (CLA)
1 de 1 Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) - Foto: LINDAURO GOMES/ESTADÃO CONTEÚDO

A Agência Central de Inteligência (CIA) usou satélites para espionar o programa espacial brasileiro e o complexo industrial militar do país entre 1978 e 1988. Documentos desclassificados pelo governo americano em dezembro de 2016 mostram análises de fotos aéreas das instalações de fábricas, da base de lançamentos de foguetes em Natal (RN) e do campo de provas de armamentos da Serra do Cachimbo, onde a Força Aérea Brasileira (FAB) construía um poço que poderia ser utilizado em testes de artefatos nucleares.

Além de satélites, os papéis mostram que os adidos de defesa e a embaixada americana dispunham de rede de informantes. Isso permitiu aos EUA saber detalhes das negociações secretas entre Brasil e Arábia Saudita e as vendas de blindados e foguetes para o regime de Saddam Hussein, no Iraque, e para a Líbia, governada então por Muamar Kadafi.

Os americanos temiam que, por meio dessas vendas, a tecnologia ocidental fosse parar nas mãos da União Soviética. Tinham ainda restrições às entregas das nações hostis aos EUA. Mas também enxergavam uma vantagem: o equipamento brasileiro podia roubar dos russos mercados inacessíveis a Washington.

Produzido pelo Centro Nacional de Interpretação Fotográfica, o relatório “Alcance de Mísseis: Instalações Mísseis Estratégicos SSM (Míssil Terra-Terra)” lista dez locais de interesse da espionagem americana. O primeiro a ser fotografado foi a Base Aérea de São José dos Campos.

Na mesma cidade, os satélites registraram o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e a fábrica da Avibras — companhia brasileira que projeta e desenvolve produtos e serviços bélicos —, que participava dos projetos de foguetes militares.

Na vizinha Santa Branca, outra área da empresa foi vigiada, assim como uma indústria de explosivos em Piquete — os americanos pensavam que ali seria feito o combustível sólido do foguete meteorológico Sonda IV e do Veículo Lançador de Satélites (VLS).

O relatório de novembro de 1982 usa fotos da Base Aérea de Natal e de sua área de lançamento de foguetes e do campo de teste de arma do Cachimbo. Os americanos previam que, em 1988, o Brasil teria condições de lançar o VLS. O veículo só seria lançado em 1997 e seria abandonado após explodir em 2003 na Base Aérea de Alcântara (MA) (foto em destaque), deixando 21 mortos.

Em 1º de outubro de 1982, os americanos fotografaram um protótipo do Sonda IV. Ele podia atingir mil quilômetros de altitude e levar carga de 300kg. Pelas coordenadas geográficas da foto, é possível saber que foi feita sobre São José dos Campos. Em 27 de março de 1984, documento relatava a construção da torre de lançamento do Sonda IV, em Natal. Para os americanos “o Sonda IV podia ser adaptado para transportar armas”, o que nunca ocorreu.

Engesa
Os satélites da CIA também espionaram a Engesa, maior indústria de armamentos brasileira. Fabricante dos blindados Cascavel e Urutu, ela pretendia produzir o tanque pesado Osório. Em 25 de agosto de 1978, o satélite identificou pela primeira vez na fábrica em São José dos Campos oito Urutus e um Cascavel. O Brasil passou a vender esses blindados para Líbia, Iraque e Colômbia.

Em 1980 e 1984, a CIA produziria relatórios acusando o Brasil de não se importar com o destino final das armas vendidas. Segundo eles, blindados Cascavel foram repassados pela Líbia aos rebeldes da Frente Polisário, que lutavam pela independência do Saara Ocidental (território ocupado hoje pelo Marrocos), e a rebeldes do Chade.

No papel de 1984, os americanos analisavam as vulnerabilidades da indústria bélica brasileira. A principal delas, segundo a CIA, era depender de vendas externas. Qualquer corte de compras podia ser letal para o setor.

O documento secreto via risco de vazamentos de tecnologia para países hostis do Terceiro Mundo e para Moscou, capital russa. O Brasil teria despertado atenção dos europeus, mas não estaria preparado para proteger seus segredos. Também informava que o governo brasileiro vetara as vendas para Cuba e Coreia do Norte.

Segredo
As vendas da indústria bélica a países árabes eram apontadas pelos americanos como a causa de o Brasil votar contra os EUA e Israel nas Nações Unidas. Por fim, o documento revelava um segredo: o Brasil teria feito um acordo em janeiro de 1984 de US$ 2 bilhões para desenvolver e produzir o tanque Osório para a Arábia Saudita.

Só três meses depois os dois governos tornariam público protocolo de cooperação militar, assinado em Brasília pelo ministro da defesa saudita, o príncipe Sultan Bin Abdulaziz. Em 1989, os governos anunciariam a produção do Al Fahad, a versão saudita do Osório, que acabou não se concretizando – os sauditas compraram o tanque americano Abrams. Os EUA estavam certos: a quebra do acordo com os árabes foi letal à Engesa, que foi à falência em 1993.

IEAv
Nos anos 80, a espionagem dos EUA estava interessada em saber o que se fazia no secreto Instituto de Estudos Avançados, o IEAv, agregado ao então Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos.

Avaliação da Agência de Inteligência da Defesa, uma espécie de CIA militar, vazada em 1983, trazia o título Frente ao Pentágono, um Hexágono, e dizia que o plano brasileiro de construir armas nucleares passava pelas atividades desenvolvidas naquele prédio de seis faces.

O analista americano destacava a preocupação com a pesquisa para enriquecer urânio com o uso de lasers — um raro conhecimento, mais eficiente e rápido na tarefa de separar o U-235 adequado à produção do combustível dos reatores geradores de energia ou de bombas atômicas.

O documento destacava peculiaridades das instalações subterrâneas do IEAv e de um grande salão que abrigava o supercomputador Cray, único desse tipo na América Latina.

Havia, sim, o plano secreto, com atribuições divididas entre os centros de investigação científica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Era considerado paralelo ao programa nuclear oficial, de 1975, resultado de um acordo entre os governos do Brasil e da Alemanha.

Em 1988, com a extinção da estatal Nuclebrás, por determinação do ex-presidente José Sarney, a empreitada do sigilo foi regularizada. A meta da construção de artefatos explosivos foi cancelada no mesmo ano. Entretanto, a essa altura, o Brasil já dominava toda a tecnologia do ciclo do urânio.

Mas não pela via do laser. O método adotado na época, e ainda hoje, emprega máquinas de ultracentrifugação — que não foram citadas no documento. A coleta de informações não era praticada apenas pela CIA, mas também por outras agências americanas e eventualmente pelos ingleses.

A pauta dos curiosos envolvia as atividades de empresas como o grupo Engesa, por causa da sua grande desenvoltura nas ações comerciais junto a países clientes tão diferentes quanto podiam ser naquele momento a Líbia, de Muamar Kadafi; o Iraque, de Saddam Hussein; ou o Chile, de Augusto Pinochet, além de uma constelação de forças da África e do Oriente Médio.

O catálogo de produtos — blindados Cascavel, com canhão 90 mm, Urutu, e Jararaca, de reconhecimento armado; munições e propelentes — levava a definições do tipo, “tratam-se de bens militares baratos, confiáveis e de manutenção simples”.

Espionagem
A rede de informantes americana atuou ainda na espionagem das atividades da empresa Órbita, uma parceira montada nos anos 1980 com a participação da Engesa e da Embraer. Além dos informantes, a CIA recebia notícias da embaixada americana, que mantinha contatos com empresários brasileiros.

Vito Antonio de Grassi, então presidente da Órbita, é apontado no relatório de 20 de maio de 1988 como a fonte da informação de que a empresa ia produzir mísseis terra-ar, ar-ar e antitanque para as Forças Armadas brasileiras. O vice-presidente da Órbita era o brigadeiro Hugo Piva, que depois chefiaria uma missão técnica brasileira que desenvolvia armas para Saddam Hussein.

O mesmo relatório informava que a Avibrás estaria desenvolvendo um míssil tático terra-terra. A embaixada dos EUA não quis se manifestar sobre o caso, assim como a Força Aérea Brasileira, a Embraer, a Avibrás e Vito Antonio de Grassi.

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