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Cresce o número de crianças devolvidas após serem adotadas no DF

Em 2017, até setembro, 6 crianças voltaram a abrigos na capital do país, depois de ganhar uma família. O trauma é devastador

atualizado

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Conseguir um lar nem sempre é o final feliz de uma história marcada pela espera. Há 122 crianças e adolescentes disponíveis para adoção no Distrito Federal. Alguns deles ganharam uma casa nova, alguém para chamar de pai e mãe, mas em seguida viveram um segundo abandono.

De 2013 a 2017, 10 crianças retornaram a abrigos após terem sido adotados no DF. Até o ano passado, a média era de uma adoção desfeita a cada 12 meses. Em 2017, até setembro, já foram 6 casos.

A Vara da Infância do DF tenta entender as razões desse aumento. “Os números são muito recentes, ainda vamos estudá-los. Mas o índice de sucesso das adoções é alto: 99% dão certo. Há muito mais a comemorar”, afirma o psicólogo e chefe da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância do DF, Walter Gomes. Por ano, são realizadas cerca de 100 adoções no DF.

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, de 2008 a 2015, 130 pequenos viveram essa difícil situação no Brasil. Só em 2016, 1.226 crianças e adolescentes ganharam uma nova família. O número de desistências é baixo diante da quantidade de adoções realizadas no país, mas não deve ser ignorado.

Arte / Metrópoles

“As consequências emocionais geradas por uma nova situação de abandono são as piores possíveis, devastadoras. Quem passa por isso acaba desenvolvendo uma falsa ideia de que é incapaz de despertar amor nas pessoas”, afirma Walter Gomes.

Essas crianças passam a achar que não merecem uma família e, muitas vezes, vão alimentando uma culpa muito densa e cruel

Walter Gomes

As justificativas das famílias desistentes costumam ser similares: a culpa é depositada sobre os ombros das crianças. Comportamentos comuns na faixa etária, como dificuldade em assimilar regras e limites, fazer birra, falar palavrões ou não gostar de tomar banho, são usados como motivos para o novo abandono.

“A gente percebe, em algumas pessoas, a falta de capacidade de fazer autocrítica. Elas se esquivam de assumir qualquer tipo de responsabilidade pelo insucesso daquela vinculação socioafetiva”, explica Walter.

Na maioria dos casos, os problemas em nada se diferem dos vividos por qualquer família, mas a dificuldade em criar afeto pela criança adotada torna-se uma barreira para aceitá-la no convívio familiar. “O preconceito, muitas vezes, alarga os juízos de valor negativos e o ato de repulsa”, avalia o psicólogo.

Para evitar que a situação ocorra, as famílias que se dispõem a adotar fazem acompanhamento com psicólogo e assistente social na Vara da Infância. Passam por um “fortalecimento emocional”, como define Walter Gomes. Somente no convívio familiar, entretanto, surgem os desafios. As crianças tendem a testar os novos pais para saber se eles realmente “vieram para ficar”.

“Só que algumas famílias não conseguem perceber esses testes e não se distanciam do perfil idealizado da criança perfeita, angelical. Muitos querem um filho que não existe e não querem abrir mão de uma fantasia”, relata Walter Gomes.

“Não havia nada de errado com ela”
Aos 2 anos, Maria foi adotada por uma família. Com 90 dias de convivência, retornou ao abrigo. Diziam que ela era uma criança muito voluntariosa e com dificuldades para dormir. Há 5 meses, com 4 anos, ela ganhou novos pais.

“A criança que já passou por uma devolução é estigmatizada. Com o tempo, a gente viu que o problema era com a família anterior, não com ela, que é saudável, alegre e hoje vive muito feliz”, relata o pai, João.

A família de João se prepara para lidar com possíveis traumas que se revelem no futuro, mas é otimista. “Crianças que viveram em abrigos são muito resilientes, têm tanta vontade de ser feliz que passam por cima de tudo isso”, diz o pai.

 

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A psicóloga Samia Salomão, da ONG Aconchego, que apoia famílias e crianças em processo de adoção, afirma que casos de desistência têm ocorrido com mais frequência. “Pode ser porque o número de adoções aumentou também”, pondera. Recentemente, ela acompanhou algumas dessas situações.

“Quando isso acontece, fica muito difícil a criança confiar em outra pessoa no futuro. Há políticas públicas que orientam a preparação de famílias e crianças na adoção, mas elas são falhas, não ensinam a lidar com essa frustração”, afirma Samia.

A bancária Débora Alves, 36 anos, teve de tomar a difícil decisão de desfazer uma adoção. Ela já tinha um filho adotivo e tornou-se mãe de outro menino (6 anos) e de uma garota (4 anos), irmãos. A relação com a menina nasceu naturalmente, mas com ele as coisas não saíram como esperado.

“Não havia nada de errado com ele, mas não conseguimos nos afeiçoar. O amor não nasceu. Fizemos terapia, tentamos de tudo. Não seria justo privá-lo de ser o filho de alguém. A devolução é um problema real que precisa ser discutido para além dos preconceitos”, relata.

Pedro (nome fictício), porém, não voltou ao abrigo. Débora intermediou a adoção dele por outra família. Hoje, ele tem 12 anos e convive com a irmã biológica. A bancária reclama de falta de apoio da Justiça. “Não nos ofereceram psicólogo nem assistente social. Só encontrei julgamentos quando tomei a decisão de desfazer a adoção”, lamenta.

Carrego a certeza de que fiz o que era certo. Jamais me perdoaria se tivesse privado aquela criança de ter uma mãe de verdade

Débora Alves

A desistência da adoção é possível durante o período de convivência, ou seja, o tempo entre levar a criança para casa e o juiz oficializar a adoção – o que pode levar até 2 anos. Após concluído o processo, a devolução é considerada abandono e o adulto pode ser responsabilizado perante a lei.

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