“Com toda a ajuda, ainda existe uma grande miséria.” A frase é de Cleobaldo Martins de Oliveira, de 78 anos, líder de uma associação filantrópica de voluntários em Goiânia, que desde 1971 doa comida para pessoas em situação de rua.
Tio Cleobaldo, como é conhecido, assiste ao pós-pandemia com cautela. Para ele, a fome constitui uma sequela social da Covid-19, e exige mais atenção da sociedade civil e do governo.
Ele não está sozinho. Quem trabalha com esse tipo de assistência alerta que a gravidade da situação é tanta que, mesmo com a solidariedade, falta comida. O efeito da pandemia é acentuado pelo contexto econômico que o país enfrenta em 2022, com inflação alta e desemprego persistente.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a inflação em abril registrou alta de 1,06%, a maior para o mês desde 1996, e o desemprego persistiu no primeiro trimestre de 2022. A taxa de desocupação atinge 11,1% da população brasileira. São 11,9 milhões de pessoas sem trabalho.
A conjuntura econômica reflete na alimentação da população. No Brasil, de acordo com pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), 36% dos brasileiros em 2021 não tinham dinheiro para alimentar a si ou a sua família, em algum momento, nos últimos 12 meses. Em 2019, a taxa ficou em 30%.
O índice é o maior desde 2006, quando foi iniciada a série histórica. Esta é a primeira vez, desde então, que a insegurança alimentar brasileira supera a média simples mundial.

Inflação é o termo da economia utilizado para indicar o aumento generalizado ou contínuo dos preços de produtos ou serviços. Com isso, a inflação representa o aumento do custo de vida e a consequente redução no poder de compra da moeda de um paísKTSDESIGN/SCIENCE PHOTO LIBRARY / Getty Images

Em outras palavras, se há aumento da inflação, o dinheiro passa a valer menos. A principal consequência é a perda do poder de compra ao longo do tempo, com o aumento dos preços das mercadorias e a desvalorização da moedaOlga Shumytskaya/ Getty Images

Existem várias formas de medir a inflação, contudo, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é o mais comum delesJavier Ghersi/ Getty Images

No Brasil, quem realiza a previsão da inflação e comunica a situação dela é o Banco Central. No entanto, para garantir a idoneidade das informações, a pesquisa dos preços de produtos, serviços e o cálculo é realizado pelo IBGE, que faz monitoramento nas principais regiões brasileirasboonchai wedmakawand/ Getty Images

De uma forma geral, a inflação pode apresentar causas de curto a longo prazo, uma vez que tem variações cíclicas e que também pode ser determinada por consequências externasEoneren/ Getty Images

No entanto, o que influencia diretamente a inflação é: o aumento da demanda; aumento ou pressão nos custos de produção (oferta e demanda); inércia inflacionária e expectativas de inflação; e aumento de emissão de moedaselimaksan/ Getty Images

No bolso do consumidor, a inflação é sentida de formas diferentes, já que ela não costuma agir de maneira uniforme e alguns serviços aumentam bem mais do que outrosAdam Gault/ Getty Images

Isso pode ser explicado pela forma de consumo dos brasileiros. Famílias que possuem uma renda menor são afetadas, principalmente, por aumento no preço de transporte e alimento. Por outro lado, alterações nas áreas de educação e vestuário são mais sentidas por famílias mais ricasJavier Zayas Photography/ Getty Images

Ao contrário do que parece, a inflação não é de todo mal. Quando controlada, é sinal de que a economia está bem e crescendo da forma esperada. No Brasil, por exemplo, temos uma meta anual de inflação para garantir que os preços fiquem controlados. O que não pode deixar, na verdade, é chegar na hiperinflação - quando o controle de todos os preços é perdidocoldsnowstormv/ Getty Images
Desde o pico de casos da Covid-19, a associação coordenada por Tio Cleobaldo distribui alimentos prontos às pessoas em situação de rua. Por semana, são preparadas mais de 2,5 mil refeições. A entidade sobrevive única e exclusivamente de doações.
Preocupado, ele comenta: “Estamos vendo o sofrimento dos nossos irmãos. Como toda a ajuda, ainda existe uma grande miséria. Precisamos nos direcionar ao bem. As pessoas estão em grande dificuldade. Fazemos o que podemos. Fica a desejar, porque a demanda das dificuldades é muito grande”.
Fome sem precedentes
As estatísticas são falhas e quase inexistentes, mas quem tem o olhar mais apurado percebe o aumento de pessoas em situação de rua, sobretudo em grandes centros urbanos.
O presidente na Central Única das Favelas (Cufa) no Distrito Federal, Bruno Kesseler, traz um dado alarmante.
“Para nós, da Cufa, o aumento da procura por comida foi de 100%. Em nenhum ano da Cufa vimos tantas pessoas pedindo comida, ajuda. Nunca fizemos um trabalho de assistencialismo, sempre focamos em projetos de capacitação”, pondera.
Bruno explica que, desde o início da pandemia, a fome expôs uma realidade que passava despercebida. “Muita gente abaixo da linha da pobreza, sem oportunidade. A pandemia trouxe isso à tona. Percebemos, de uma forma drástica, o aumento das pessoas que perderam o emprego, que vivem em situação crítica, muitas pessoas pedindo ajuda na rua. É desesperador”, frisa.
O líder da Cufa faz um apelo e pede que as pessoas continuem doando alimentos e auxiliando quem precisa.
“Tivemos vários casos de pessoas que nunca precisaram de cesta básica e passaram a entrar na fila. Agora diminuíram muito as doações. A situação se estende, ainda é uma realidade. O vírus não infecta tanto mais, mas as sequelas econômicas e sociais continuam”, conclui.
Preconceito
O mercadólogo Neto Gadioli, de 38 anos, participa de um grupo religioso que distribui comida no centro da capital federal. A Aliança Missionária Mãos Abertas conta com 15 pessoas que se revezam no trabalho.
“Houve um aumento da população em situação de rua e existe muito preconceito. A desigualdade social e aumentou muito na pandemia. É triste e muito doloroso”, defende.
Neto Gadioli cobra mais apoio do poder público para combater a crise. “Não falta estrutura nem dinheiro; falta vontade. Notamos que há governantes e partidos que são mais sensíveis com as causas sociais, mas outros, não”, critica.
Programa do governo
Em novembro do ano passado, o governo federal criou o programa Brasil Fraterno – Comida no Prato, ligado ao Ministério da Cidadania.
A iniciativa visa mobilizar doações de alimentos para entidades socioassistenciais, bancos de alimentos e outros equipamentos que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade. Assim, o projeto contribui para reduzir perda e desperdício de alimento e combater a fome.
A reportagem entrou em contato com a pasta questionando quantas empresas se cadastraram e qual a quantidade de alimentos já distribuída. O ministério não se manifestou. O espaço segue aberto para esclarecimentos.