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Estudo: apenas 48% do Cerrado brasileiro conta com vegetação nativa

Outros indicadores mostram que 73% das terras do bioma estão em áreas privadas e que 85% dos desmatamentos ocorreram em propriedades rurais

atualizado

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Jéssica Eufrásio/Metrópoles
Brigadistas tendo uma reunião
1 de 1 Brigadistas tendo uma reunião - Foto: Jéssica Eufrásio/Metrópoles

Cavalcante (GO) — Com uma área que cobre cerca de 23% do território nacional, o Cerrado é o segundo maior bioma do país, mas tem metade da área comprometida por ações antrópicas. Estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), com base em dados de 2022, revela que apenas 48% do ecossistema ainda conta com vegetação nativa.

Outros indicadores preocupantes mostram que 73% das terras do bioma estão em áreas privadas e que 85% dos desmatamentos ocorreram em propriedades rurais. A publicação dos dados se deu na semana do Dia Nacional do Cerrado, comemorado em 11 de setembro. 

Dependentes desse bioma — o único dos seis presente em todas as regiões do Brasil —, sobrevivem as populações do Distrito Federal e de, no mínimo, 11 estados: Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí, Paraná, Rondônia, São Paulo e Tocantins. Contudo, as interferências para além do necessário à subsistência coloca em risco não só a espécie humana, como incontáveis outras. 

Em Goiás, 70% do Cerrado já não tem mais vegetação nativa, mas em um povoado quilombola do estado, a 340km do centro de Brasília, a fauna e a flora de um dos ecossistemas mais diversos do planeta resistem, à mercê de sucessivos ataques, principalmente de mercados vorazes como o do agronegócio.

Desde 1985, o território quilombola Kalunga teve 16% do Cerrado desmatado. Em quase 40 anos, essa taxa subiu 6 pontos percentuais — um avanço considerado pequeno se comparado ao verificado em outras áreas. 

Embora a redução da mata nativa envolva ações antrópicas diversas, uma das que tem mais alcance, repercussão midiática e que gera mais mobilização para combate, devido aos efeitos visuais imediatos, são os incêndios em vegetações. O que muitos não sabem, porém, é que a saída para resolver o problema encontra, no mesmo causador do cenário, um importante aliado à preservação.

O uso do fogo com base em conhecimentos tradicionais e, na última década, com acompanhamento de pesquisadores e de técnicos de órgãos públicos federais, transformou os kalungas em referência na preservação do Cerrado.

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Queimas prescritas

Os estudos sobre técnicas de Manejo Integrado do Fogo (MIF) no território Kalunga começaram em 2016. Entretanto, cinco anos antes, equipes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já seguiam na contramão das políticas de “fogo zero”.

Chefe da Divisão Técnica Ambiental do Ibama em Goiás, Jesse Rodrigo Rosa afirma que o controle de queimadas exclusivamente por meio de ações emergenciais não é efetivo, mas dispendioso. E, para o analista, a mudança de paradigma quanto ao uso do fogo gerou avanços importantes, em especial, depois de contar com a comunidade.

“Contratar pessoas da região fortaleceu e desenvolveu a habilidade de manejar o fogo da forma adequada, gerou renda e promoveu mais relação com a terra, o que se perde com o desmatamento. Na Amazônia, por exemplo, há uma grande pressão internacional. Ela chama a atenção do mundo. Só que o primo pobre dela é o Cerrado. E a proteção dele está muito fragilizada”, destaca Jesse.

Em 2018, o MIF chegou ao Congresso Nacional, por meio do Projeto de Lei nº 11.276, enviado pelo Poder Executivo, com a proposta de criar a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo. O texto, que inclui a necessidade de haver “orientações técnicas relativas às peculiaridades locais, às épocas, aos horários e aos dias com condições do tempo mais adequadas para realização da operação”, encontra-se estacionado no Senado.

Apesar de o fogo exigir empregos diferentes, a depender do bioma, a combinação de pesquisas com conhecimentos comunitários e análises por geomonitoramento levou a um ciclo virtuoso e a resultados positivos no combate a incêndios criminosos no Cerrado. 

Atualmente, o que estudiosos e equipes do Ibama, de outros órgãos federais e de instituições sem fins lucrativos se esforçam para levar adiante é a informação de que a proposta de manejo do fogo não tem relação com queimas indiscriminadas, mas controladas — prescritas —, com objetivo definido e prazo para terminar.

“Além disso, o fogo pode ser atenuante dos efeitos das mudanças climáticas e auxiliar diretamente na manutenção e na conservação da biodiversidade”, destaca a bióloga e doutora em ciências ambientais Hélida Cunha, professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

Experiência comunitária

O intervalo de, em média, dois a cinco anos para execução das queimas prescritas, obrigatoriamente fora da fase de seca, varia de acordo com fatores como: produção de combustível natural e aspectos visuais da área, dados de mapas de acompanhamento do Cerrado e, claro, conhecimentos locais. 

Os cerca de 263 mil hectares que correspondem ao território quilombola Kalunga, nos municípios goianos de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre, contam com 75 brigadistas do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), vinculado ao Ibama. 

O grupo que atua na região é composto majoritariamente por moradores da comunidade e, com o tempo, tornou-se referência no combate a queimadas criminosas no Cerrado. “Esse bioma é dependente do fogo, mas da forma correta”, afirma Cássio Tavares de Souza, coordenador do Prevfogo em Goiás. “Recebemos muitas críticas [pelas queimas prescritas] no início. Hoje, há o entendimento de que pode ser necessário sacrificar um pedaço para proteger o todo.”

Quando o Prevfogo chegou ao território Kalunga, em 2011, os moradores temiam a proposta de aderir às queimas prescritas, por meio da abertura de aceiros, em virtude da fiscalização — que, até então, tinha o “fogo zero” como norte. Posteriormente, ficou constatado que a iniciativa contribui para a preservação de nascentes, buritizais e veredas.

Mesmo assim, a desconfiança da comunidade quanto à possibilidade de sofrer consequências limitava o uso do elemento. Com o passar dos anos, o trabalho dos próprios kalungas nas brigadas, associado a conhecimentos tradicionais dos quilombolas, à atuação técnica de instituições públicas e ao acompanhamento científico pela academia, permitiu alcançar resultados positivos na preservação da fauna e da flora do Cerrado. 

Conhecimentos na prática

Os brigadistas nascidos e criados no povoado onde atuam reúnem noções básicas e necessárias sobre o manejo do fogo, passadas de geração em geração. Entre elas, a época mais propícia para usá-lo sem riscos e os indicativos climáticos que favorecem o manuseio em áreas de vegetação.

Integrante do Prevfogo desde a criação do grupo no território Kalunga, o primeiro supervisor de brigada natural da região foi José Gabriel dos Santos Rosa, 33 anos. Ele assumiu a função em 2021. “Em 2011, a gente nem tinha EPI [equipamento de proteção individual] e usava o de outras brigadas. Também não tínhamos viatura. No primeiro combate, subimos uma serra empurrando o carro em que estávamos. E, se pintasse uma fumacinha a 10, 15, 20 quilômetros dali, a gente ia”, detalha. 

Em tese, o fato de as brigadas contarem com representantes Kalunga facilitaria o contato dos combatentes com líderes locais, para troca de informações sobre a prevenção a incêndios. “Só que a gente se reunia para levar chapuletada”, conta José Gabriel, sobre a recepção aos integrantes do Prevfogo no começo da iniciativa. “Mas o cara que vira brigadista por um ano não quer sair mais. É viciante. E a ação em locais estratégicos fez diminuir muito os grandes incêndios nas comunidades.”

Expostos ao calor intenso, à fumaça excessiva, a intempéries e a situações de risco, os brigadistas do Ibama são contratados temporariamente, por seis meses. Eles recebem um salário-mínimo (R$ 1.320), além de vale-alimentação e auxílio por integrante da família.

A função não se restringe a alertar a comunidade sobre os prejuízos dos incêndios no Cerrado, mas, também, educar quanto ao uso do fogo como ferramenta para impedir queimadas florestais criminosas ou acidentais — nos raros casos provocados por raios, pois a principal causa ainda envolve ação antrópica.

“O conhecimento de moradores locais é importante para garantir a noção sobre a janela de queimada [o período de permissão e proibição a elas]. Com visitas de brigadistas a casas e escolas para orientar a população, a comunidade também trabalha”, completa José Gabriel.

A instrução sobre os mecanismos de manejo facilitou, ainda, a vida de kalungas que dependem do cuidado com a lavoura para se sustentar. “A gente sofria para roçar, abrir aceiros. Fazer queimadas dava mais trabalho. Hoje, isso mudou. É um serviço muito bom para eles [brigadistas] e para nós”, diz o lavrador José dos Santos Rosa, 69, morador do povoado de Engenho II, visitado pelo Metrópoles.

De Goiás para o Canadá

O domínio do MIF permitiu aos Kalunga do Prevfogo de Cavalcante (GO) alcançar patamares mais altos, por meio do combate a incêndios com projeção local, nacional e até internacional. Eles incluem os registrados no Jardim Botânico de Brasília; na Floresta Nacional (Flona) da capital federal; no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO); e no Parque Indígena do Xingu (MT)

Outro momento importante para a brigada ocorreu recentemente, quando parte dos integrantes do Prevfogo de Goiás compôs a missão de combate aos incêndios florestais que assolaram o Canadá entre março e agosto de 2023. A operação contou com 104 integrantes do Ibama, do ICMBio, da Força Nacional brasileira, do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil.

Dos 41 convocados pelo Ibama, 10 eram do território Kalunga. O grupo ficou no Canadá por um mês, de 21 de julho a 21 de agosto. “Eram só pinheiros [queimando] e 12 horas de trabalho por dia. Quando chegamos lá, fomos avaliados, tivemos treinamentos e instruções atrás de instruções. As florestas queimavam, mas [as forças de segurança] ainda seguraram a gente por dois dias”, conta o supervisor de brigada Charles Pereira Pinto, 38, morador de Cavalcante.

O treinamento era necessário diante do cenário adverso. A região registrava temperaturas abaixo de 0°C, tinha florestas de vegetação esverdeada e não acumulava materiais combustíveis na superfície. Mesmo assim, ardia por milhares de hectares. O motivo era o fato de os incêndios terem origem subterrânea, o que exige a abertura de trincheiras para controle da fonte das chamas.

As escavações, com até 2 metros de profundidade, não impediam, contudo, que o incêndio também se alastrasse pela superfície e transformasse a flora em um verdadeiro cemitério. Nesses casos, a queimada é lenta e pode durar meses. “Ainda que corrêssemos, não conseguiríamos alcançar a velocidade das chamas. Só que brigadista cerratense trabalha com fogo na cara; por isso, somos bons”, completa Charles.

Apesar dos desafios, o desempenho dos Kalunga fez com que assumissem a linha de frente no combate, tal como os grupos de elite do país norte-americano. “Nós jogávamos mais de 15 mil litros de água, e o fogo parava. No dia seguinte, continuava a queimar [no mesmo lugar], porque era preciso retirar as raízes das árvores. [A missão] foi um verdadeiro aprendizado de que organização é tudo”, avalia. 

Histórico

Em 1989, o Prevfogo surgiu, na forma de um sistema nacional. Mais de uma década depois, em 2001, a iniciativa se transformou em um centro especializado, com treinamento e contratação de brigadistas.

Enquanto o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) cuidava das unidades de conservação (UCs), como parques, reservas e florestas, o Ibama assumiu a responsabilidade por áreas federais — terras indígenas, assentamentos e comunidades tradicionais.

As primeiras queimas controladas autorizadas se iniciaram no Mato Grosso em 2011. Em outubro de 2017, o maior incêndio registrado no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (PNCV) — provocado após anúncios de ampliação da UC — mobilizou equipes de diferentes grupos e chamou a atenção para a importância da medida de controle. 

Depois de disseminado o entendimento sobre o fogo planejado como um processo importante à preservação do Cerrado, o último grande incêndio em vegetação na área Kalunga, onde quilombolas sobrevivem desde o período escravista, aconteceu naquele ano. Atualmente, as maiores ocorrências na região têm relação com queimas que fugiram de controle durante a limpeza de roças ou executadas em época errada.

Analista ambiental federal do Ibama em Goiás, Eder Porfirio Junior considera que a legislação em vigor desde a década de 1980 é “hiperrestritiva”, mas se tornou parâmetro para a noção de proibição total ao fogo. “A abordagem socioambiental é bem mais efetiva. Combater incêndios gasta muito mais recursos. E os brigadistas se tornaram referenciais regionais, mesmo não tendo atuação permanente. Essa é uma conquista que mostra a importância desse trabalho”, pontua.

Ecossistema renegado

Espalhado por mais de 10 unidades da Federação, o Cerrado se caracteriza pela diversidade da fauna e da flora, apesar de representar um bioma. A área natural é considerada, inclusive, a savana tropical mais rica em espécies vegetais do mundo.

Assim como em outros ecossistemas brasileiros, a pressão mercadológica chegou a ele. Parcelamentos do solo sem escritura e por donos de fazenda fazem a área preservada se perder em meio ao crescimento do agronegócio e à chegada de grandes empresas.

O ecossistema ganha contornos com cinturões verdes que garantem uma porcentagem de preservação definida e, consequentemente, a regularidade de propriedades. Porém, fauna e flora não têm os mesmos parâmetros de divisão do território para saberem onde se abrigar.

Para Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam, o Cerrado é uma joia para o Brasil e tem sido negligenciado quanto ao potencial de serviço ambiental. “O país virou as costas para ele. Mas esse ecossistema é estratégico. É dele que pulsam as águas que banham as bacias hidrográficas”, lembra. 

“Vemos campos e campos de grãos produzidos sem regulamentação quanto ao uso de agrotóxicos, sem responsabilização de produtores. E a falta de acolhimento desse bioma, do ponto de vista da conservação, deixa o que ainda resta dele nas mãos de entes privados”, alerta a pesquisadora.

O panorama negativo se completa com obstáculos para frear a ação de desmatadores, tanto pelo mínimo rigor da lei quanto pelo baixo efetivo para barrá-los e puni-los. O estado de Goiás, por exemplo, tem 12 agentes de fiscalização do Ibama, mas, na semana passada, seis deles estavam na Amazônia para prestar apoio a operações. 

A falta de incentivos à preservação também eleva os riscos ao Cerrado; por isso, entre as demandas de quem acompanha a devastação do bioma está a inclusão desse ecossistema em uma agenda de mobilização nacional e internacional semelhante à da Amazônia. O objetivo é romper o entreguismo que coloca abaixo as chances de sobrevivência das espécies antes que seja tarde demais.

*O Metrópoles viajou a Cavalcante (GO) a convite do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam)

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