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A hora da reação: artistas defendem a liberdade de expressão

Gaudêncio Fidelis, curador de “Queermuseu”, conversa com a coluna sobre possíveis repercussões do fechamento da mostra

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto-de-abre3 nao calarás museu nacional - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Uma semana bem puxada para as artes visuais brasilienses. A classe artística do Distrito Federal começa a se organizar diante de uma série de ataques à liberdade de expressão, numa onda nacional de ameaças e intervenções desde o traumático fechamento da exposição “Queermuseu”, em setembro, na cidade de Porto Alegre.

Duas iniciativas marcaram a semana. Na segunda-feira (23/10), o gaúcho Gaudêncio Fidelis, curador de “Queermuseu”, foi protagonista de debate na Universidade de Brasília (UnB). Promovido pelo Instituto de Artes e pela Faculdade de Comunicação, o encontro reuniu uma centena de estudantes, professores, artistas e entusiastas para ouvir o testemunho de um profissional que se viu colhido por um furacão.

“Está aberto um debate que vai muito além da liberdade artística e da liberdade de expressão”, anunciou Fidelis. “A sociedade brasileira precisa urgentemente pensar sobre os valores mais básicos da democracia, sobre a liberdade de escolha de cada um, sobre o que podemos ou não podemos ver, sobre o que podemos ou não podemos conhecer.”

Tais palavras serviram também como mote para o primeiro encontro promovido pelo recém-criado coletivo “Não Calarás”, que se apresentou na manhã de quarta-feira (25/10), no Museu Nacional Honestino Guimarães.

O movimento começou como um agrupamento em torno da mostra coletiva “Não Matarás”, em cartaz ali mesmo no Museu Nacional. Reunindo obras de temática francamente política, a exposição foi visitada por um grupo de deputados federais supostamente movido por denúncias semelhantes àquelas que levaram o Banco Santander a fechar a exposição que abrigava em seu centro cultural.

“Percebemos que a ameaça de censura também está muito próxima de nós aqui em Brasília”, explica a artista Valéria Pena-Costa, uma das articuladoras do “Não Calarás”. “Então começamos a nos movimentar. Até por morarmos e trabalharmos na capital da República, sentimos a obrigação de responder o mais rápido possível a essas demonstrações arrogantes de poder.”

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Num primeiro momento, as tratativas de Valéria Pena-Costa chegaram a colegas artistas que, assim como ela, estão envolvidos em “Não Matarás” e apresentam obras na exposição que segue em cartaz. Com o passar das semanas, o grupo vem aumentando – e ela espera que aumente ainda mais. “Nossa ideia é contar com artistas, produtores, professores e todos que de alguma forma estiverem envolvidos na cadeia produtiva cultural”, diz Valéria.

Christus Nóbrega, professor da UnB e artista presente tanto em “Não Matarás” quanto em “Queermuseu”, é uma das figuras que compõem o núcleo-duro do coletivo. Além dele e de Valéria, o centro do “Não Calarás” conta ainda com os artistas Carlos Lin, Cirilo Quartim, Mario Jardim e Regina Pessoa, os produtores Clauder Diniz e Daiana Castilho e a curadora Marília Panitz.

Marília mediou o encontro de quarta-feira no Museu, diante de uma centena de pessoas. Participaram da mesa, além de Christus, as deputadas federais Maria do Rosário (PT/RS) e Erika Kokay (PT/DF), a secretária adjunta de cultura do DF Mariana Soares, a jornalista Cynara Menezes e o juiz Roberto de Figueiredo Caldas, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Esse primeiro colóquio, explica Valéria, teve uma ênfase política e jurídica para reafirmar a arte como campo integrante da democracia e dos direitos humanos. Os próximos encontros devem ampliar a conversa, trazendo representantes de outras áreas da sociedade civil.

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Por motivos de força maior, Gaudêncio Fidélis já está adiantado nesse rumo. Desde que o Santander fechou “Queermuseu”, o curador se viu como uma espécie de cruzado, e viajou o país apresentando suas convicções diante de variadas plateias. Foram mais de 140 entrevistas até o momento, ele calcula. Percurso que fez com que, para ele, a dinâmica de forças ficasse bem clara.

“Esta exposição mobilizou forças extraordinárias. Infelizmente, num primeiro momento, forças muito reacionárias e conservadoras. Mas também uma parte da sociedade, muito grande, que prima pelos valores mais básicos da democracia.”

Pouco antes de falar por um par de horas para uma audiência simpática à sua causa, na área externa da Galeria Piloto, no Campus Universitário Darcy Ribeiro, Fidelis conversou com a coluna “Plástica” – e fez um alerta: “as coisas ainda vão piorar antes de melhorar.”

Segue aqui a nossa conversa…

Gaudêncio Fidelis, a esta altura, você já falou sobre seu projeto curatorial para “Queermuseu” em entrevistas e debates. O quanto isso te fez reafirmar convicções e rever propostas?

Olhando em retrospecto, acho que a exposição se mostra cada vez mais excepcional. Sob o ponto de vista artístico, o mérito é indiscutível. Tem uma contribuição enorme na história das exposições brasileiras, da América Latina e até do mundo. Não só porque ganhou projeção mundial, mas por ter sido apenas a quarta exposição queer no mundo, depois de Washington (Estados Unidos), de Varsóvia (Polônia) e da Tate Modern, em Londres, recentemente.

Sob o ponto de vista das questões que foram levantadas a partir dessa campanha difamatória e, como enfatizo sempre, de caráter moral que foi levantada contra a exposição, já foi demonstrado pelo Ministério Público que são acusações inverídicas. O que aconteceu é que se pegou apenas quatro obras, de um universo de 264 trabalhos de 85 artistas, para criar essa narrativa difamatória sobre a exposição e que se propagou de maneira incontrolável, especialmente a partir das redes.

Você trabalhou como diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e foi curador em duas Bienais do Mercosul. Lugares e eventos de grande porte, muita visibilidade e públicos diversos. Já tinha passado por algo assim?

Organizei mais de 50 exposições, mas o que vivemos agora não tem precedentes. É uma cruzada moralista que se desenvolve a partir de uma exposição e do universo da arte. Não há precedentes na história brasileira do fechamento de exposição dessa grandiosidade, nem mesmo na época da ditadura.

A ditadura foi terrível, com a perseguição aos artistas, aos intelectuais, à comunidade acadêmica. Houve morte, tortura, tudo isso que sabemos. Mas nem naquele período houve o fechamento de uma exposição desse porte. Faço uma ressalva para a Bienal da Bahia de 1968, que foi um episódio dramático, mas diferente porque ela não chegou sequer a abrir. Lembro que agora estamos em 2017. Quantos anos depois da reabertura democrática?

As polêmicas anteriores, pontuais em exposições de grande impacto, giravam em torno de questões artísticas, não de questões morais, como é o caso desta. E não traziam uma onda difamatória como esta, que torna impossível retornar às obras e discutir sobre elas, uma vez que a exposição foi fechada. A exposição foi roubada da sociedade brasileira.

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Você passou dois anos produzindo “Queermuseu”, antes de abri-la. Não te ocorreu que uma mostra com esta proposta, dentro da sociedade brasileira atual, poderia provocar reações desse porte?

Tenho refletido muito sobre isso. “Queermuseu” faz parte de um processo que envolve outras exposições que eu vinha realizando anteriormente. Exposições que analisavam a exclusão de determinadas obras e artistas do cânone. Essa é uma questão específica do campo das artes que, em “Queermuseu”, culminaria no tema dos gêneros, da diferença e da diversidade.

Eu sempre soube que essa inserção de obras vistas como desvio da norma canônica, esse caminhos de apresentação que não são consolidados pela história da arte, sempre são difíceis. Mas nunca imaginei esse tipo de reação. E agora este episódio mostra algo que está muito evidente para mim.

Mostra que uma parte da sociedade brasileira não aceita essas narrativas. Não aceita admitir, por exemplo, que uma obra como a de Adriana Varejão fale de fato sobre as mazelas da colonização e o nível de exploração que sofreu a comunidade afro-brasileira naquele momento escravizada. Isso não é aceito. Então, diante disso, cria uma narrativa mentirosa. Não é aceito que se fale sobre o bullying e a violência infantil, tema da obra de Bia Leite. A intenção da artista é distorcida e desvirtuada por uma interpretação que a acusa de pedofilia.

Veja bem que é uma situação grave. Quero acreditar que essa parte da sociedade brasileira seja minoritária. Acontece que essa parcela ultraconservadora começa a emergir graças a lideranças que hoje estão no poder. Fica esta lição que precisamos de imediato aprender. Não temos muito tempo para reagir.

Nesse sentido, você já comentou que as coisas ainda vão piorar. Por quê?

É inegável o avanço das forças conservadoras. É inegável o crescimento do fundamentalismo no nosso dia a dia. Mas acho que será preciso ainda um tempo de amadurecimento da sociedade brasileira para o entendimento de que essas forças estão avançando muito rapidamente. É preciso uma reação, e ainda estamos no início desse processo.

Este avanço do pensamento reacionário agora ingressa no universo simbólico, entrou no mundo da arte, no campo do conhecimento e da criatividade. Isso atinge várias outras áreas, como a academia, que certamente será a próxima a ser atingida, e até mesmo a ciência.

O jornalismo cultural é uma instância de diálogo entre as questões das artes e a sociedade civil. Mas o espaço do jornalismo cultural foi duramente reduzido nos últimos vinte anos. Acha que isso é parte do problema?

A gente não pode celebrar a tragédia. A exposição fechou e essa é uma tragédia. Foi um crime cometido pelo Santander contra a cultura e o patrimônio artístico brasileiros. Por outro lado, temos que olhar a situação em perspectiva, muita coisa boa pode ser vislumbrada assim. Quem é instrumental para este diálogo? A imprensa.

A imprensa é fundamental para uma sociedade democrática. E talvez este processo, por ser muito intenso, vá beneficiar a volta de uma imprensa formadora de opinião especializada na área cultural, algo que nós tínhamos com mais intensidade. Acredito que isso vai acontecer naturalmente.

Até porque o que está em jogo não é apenas a liberdade de expressão artística, é a liberdade de expressão no seu sentido mais amplo. Como podemos vivê-la no dia a dia. Como alguns grupos ultraconservadores de extrema-direita acham que uma pessoa pode vestir, como pode se comportar, o que pode ver, ao que pode ter acesso como arte, cultura e conhecimento.

Camille Paglia, em seu livro “Imagens Cintilantes?”, comenta sobre uma má vontade e um preconceito do americano médio contra as artes e os artistas. Para ela, teria a ver com o moralismo de fundo religioso que está na formação dos próprios Estados Unidos. É possível traçar um paralelo com a sociedade brasileira?

Acho que somos ainda um país jovem, uma democracia jovem. Ainda não experienciamos plenamente o que significa a convivência com a arte, qual a importância disso para toda a sociedade democrática. Nossos preconceitos, nossa visão de mundo, a maneira como nos comportamos em relação ao outro, tudo isso se reflete na maneira como nós nos comportamos em relação a uma obra de arte.

Quando entro num museu, a obra funciona como um espelho. Ela projeta imediatamente nossas vivências e nossos preconceitos. Isso é notável em exposições sobre gênero. Manifestações de homofobia se manifestam de diversas formas em uma exposição de arte contemporânea, por exemplo. O racismo também aparece diante de obras de arte que, aparentemente, nada teriam a ver com racismo.

Nós, aqui no Brasil, ainda não passamos totalmente pelo exercício de, não só aceitar o outro e aceitar a diferença, mas também, por extensão, conviver com a arte de uma maneira mais democrática. Falta entender que a arte é uma forma de aprendizado e conhecimento. Não chegamos a esse ponto ainda, pela nossa dificuldade, inclusive, no sistema de ensino, que tem falhas de formação em vários aspectos.

Não passamos por esse exercício democrático e, por outro lado, demos um salto para uma sociedade de manifestações conservadoras e retrógradas. O que, aliás, está no seio de nossa história social. Agora nos vemos numa encruzilhada: não fizemos o caminho no ritmo e no momento em que deveria ter sido feito, pulamos algumas etapas, e caímos no ultraconservadorismo. Então, teremos que fazer um esforço muito maior do que sociedades mais avançadas, como Estados Unidos e alguns países europeus, já fizeram.

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Gaudêncio Fidelis na Galeria Piloto da UnB

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