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Como A Queda de Murdock redimiu a (já finada) série do Demolidor

Os paralelos com os quadrinhos ficam evidentes na última temporada da atração

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Quando o artista e roteirista Frank Miller se reuniu ao sofisticado ilustrador David Mazzucchelli em 1986 para reassumir, por sete breves edições, as histórias do Demolidor na Marvel, ele era o nome mais quente dos quadrinhos de super-heróis. Também pudera: havia acabado de publicar, na DC, o Cavaleiro das Trevas, perspectiva distópica e violenta sobre o Batman, que redefiniria a própria mídia das HQs para sempre.

Miller já trabalhara antes com o Demolidor, na aclamada fase entre 1979-1983, que o catapultou para o estrelato dentre os jovens roteiristas que redesenharam o propósito dos super-heróis nos anos 1980. As inovações que ele trouxe são velhas conhecidas: extraiu o aspecto espalhafatoso dos vilões do Demolidor, tornando-os gângsters violentos; trouxe limite e aplicação verossímil aos poderes do herói; abordou o mundo físico, táctil e sonoro das histórias, fazendo emergir uma miríade de sentidos; e usou e abusou do design das páginas, dos letreiros recordatórios e de narrativas em primeira pessoa, além de criar arrojadas dinâmicas entre os quadros.

Em 1986, portanto, celebrado e tarimbado, Miller retornou para um arco de histórias do Demolidor que ficou conhecido como A Queda de Murdock (em inglês, Born Again). Aqui, acompanhado do design elegante e da clareza quase oriental da arte do inigualável Mazzucchelli, seguimos a demolição (sic) espiritual e física de Matt Murdock a partir do momento em que Wilson Fisk, o Rei do Crime, descobre sua identidade.

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A premissa é simples: com o alter ego do Demolidor em mãos, a vingança do maquiavélico vilão não é simples nem direta. Seu objetivo não é arruinar seu corpo, mas sim sua alma. Ele vai destruindo o herói, digamos, “delicadamente”, ao suspender seu cartão de crédito, arruinar sua carreira como advogado e até ao manipular sua namorada de maneira que ela se atraia por seu melhor amigo, Foggy Nelson.

A Queda de Murdock é um thriller em quadrinhos, intenso e eletrizante. Murdock precisa abandonar o manto do Demolidor e buscar uma cura física e uma redenção espiritual, o que vai entrar em conflito com a curiosa paixão religiosa do herói, revelando segredos sobre sua origem.

Além disso, precisa arrumar uma maneira de desbloquear o poder “intocável” de Fisk, que nesta história se revela um dos mais ardilosos e cruéis personagens do universo Marvel. Esse arco se tornou um grande clássico (hoje lido como romance gráfico), inevitável destino para quem busca as melhores histórias de super-heróis de todos os tempos.

Abel Ferrara e Breaking Bad
Quando a série da Netflix Marvel’s Daredevil (Demolidor) estreou em 2015, clara e diretamente inspirada nas histórias de Miller, foi imediatamente aclamada como um dos melhores produtos audiovisuais já feitos sobre super-heróis. Urbana, sombria, amarga e cheia de potência, alternando cenas de porrada maravilhosamente bem coreografadas com os temas e personagens que tornaram o Demolidor o mais cult da Marvel, a série foi tão bem-sucedida que gerou spin-offs e seriados derivados (de qualidade duvidosa).

Após uma primeira temporada arrebatadora e uma segunda mais fantasiosa e que recebeu críticas quanto à verossimilhança das ações e a uma certa infantilização da trama, a onda foi meio que baixando. Dois dos spin-offs já foram cancelados (Luke Cage e Punho de Ferro). Outros dois (Jessica Jones e Justiceiro) estão sob ameaça. A terceira temporada de Demolidor apareceu sob imensa suspeita. Após o fiasco do tosco crossover entre os heróis em Defensores, e um claro mal-estar causado por um inchaço de produtos de super-heróis na TV e no cinema, aquilo que era entusiasmo e “fazer história” em 2015 se tornou um malfadado anticlímax em 2018.

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Isso ocorreu mesmo quando foi anunciado que a terceira temporada adaptaria a cultuada Queda de Murdock. Demolidor, posteriormente ao lançamento da nova fase, acabou também sendo cancelada. Há os que dizem que a Disney está guardando munição para a sua própria plataforma de streaming, mas é inegável o sentimento de que o hype do universo de heróis urbanos da Marvel/Netflix escorreu pelas sujas sarjetas da Cozinha do Inferno.

Porém, à parte uma clara saturação do gênero nas telas (o famoso “ninguém aguenta mais filme de super-herói”), a terceira temporada de Demolidor, assistida por bem menos gente que as duas  primeiras, apresenta, pode-se dizer, o mesmo frescor e potência dramática/urbana do início da série. Muito disso vem da proposta “back to basics” de seu último showrunner, Erik Oleson, e da decisão acertada de trazer A Queda de Murdock de maneira impactante e excitante para a linguagem audiovisual.

Em primeiro lugar, vale elogiar a decisão de limar traços dos spin-offs e personagens coadjuvantes impopulares/inúteis (como a enfermeira interpretada por Rosario Dawson), além de quebrar consistentemente com a narrativa de Defensores, muito sobrenatural e improvável. Em segundo, focar a atenção dos episódios no antagonismo entre o purgatório/impotência de Matt Murdock e o caráter inatingível/onipotente de Fisk. Um brutal e seco jogo de gato e rato, com corpos e mentes dilacerados, carregados numa crueza de filme policial hard boiled que não está distante das tramas maníacas do diretor Abel Ferrara.

Além disso, a adaptação dos arcos de A Queda de Murdock, não tão simples devido ao contexto da série e à natureza mais livre do quadrinho, tem uma performance exemplar de tradução entre mídias. Personagens são misturados, ordens são invertidas, coisas possíveis nas HQs e impossíveis na série são transformadas, e anacronismos dos anos 1980 são sublimados. Há também a adição de elementos da série mais antiga de Miller com o Demolidor (na composição do Mercenário) e da fase mais recente de Brian Michael Bendis, em que a identidade do herói também é revelada.

O curioso é que passagens simples e diretas no quadrinho, que carregam força pela própria agilidade e disposição da mídia, ganham aqui densidade e complexidades que somam ao imaginário da série. É o caso da narrativa de origem e formação de Ben Poindexter (o Mercenário), amado vilão psicopático do Demolidor, que tem elaboradas nuances psicológicas, ou do agente Ray Nadeem, cuja situação de encurralamento shakespeariano se assemelha às intrincadas tramas sem saída de Breaking Bad.

Mesmo assim, a temporada não deixa de ser consistentemente fiel aos arcos de A Queda de Murdock. Quem leu o quadrinho vai identificar o acidente de carro, os delírios de Matt espancando o Rei do Crime, a trama do falso Demolidor, etc. Há autonomia autoral na série, mas há também fan service na medida certa. Assim como no quadrinho, Matt passa praticamente todos os episódios renegando seu alter ego, sem usar a máscara, claro sinal de que a jornada deste herói é a recuperação de sua própria identidade.

Essa terceira temporada de Demolidor, portanto, segue a cartilha das boas longas narrativas seriadas da atualidade, com excelente material-fonte e inspirações de primeira qualidade. Seu “fracasso” e posterior cancelamento, no entanto, indicam uma virada dos rumos para o gênero, que, na era do trumpismo, parece sofrer uma “queda” do seu poder alegórico e encantador.

Como ocorreu com o gênero, nos quadrinhos, após a Segunda Guerra Mundial, há uma ressaca da mensagem virtuosa e do aspecto inocente dos super-heróis. Seria bom se esta temporada fosse um canto de cisne que nutrisse alguma dignidade final a esse universo “urbano” da Marvel, mas ainda é cedo para dizer.

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