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“Ato de amor”: entenda como acontece o acolhimento familiar no Brasil

Conheça mais sobre o serviço que envolve mais a sociedade em medidas protetivas para cuidado de crianças e adolescentes

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O acolhimento familiar
1 de 1 O acolhimento familiar - Foto: null

“Essas crianças não são nossas”, diz a publicitária paulista Shirley Haint, de 52 anos, quando é questionada sobre o que sente ao entregar os meninos e meninas que acolhe em casa para a família de origem ou para uma família adotiva. Com a frase, ela tenta resumir o espírito de desapego e contribuição social daqueles que participam do programa de acolhimento familiar no Brasil.

O acolhimento é uma medida protetiva para cuidado de crianças e adolescentes que precisam ser afastados temporariamente de suas famílias de origem por estarem em situações de risco social, como abandono, negligência ou abusos.

Shirley Haint atua como família acolhedora desde 2018, e está no quarto acolhimento. Ela relata que recebe diversas perguntas de pessoas conhecidas sobre o projeto. Entretanto, não consegue fugir do questionamento mais frequente: o que fazer quando a criança vai embora?

“É o que todo mundo quer saber. E, na realidade, é mais difícil quando elas [as crianças] chegam do que quando vão embora. Quando chegam, não as conhecemos e temos que dar muito acolhimento, já que vêm de uma completa ruptura”, revela.

Entretanto, Haint admite que o momento de partida de cada criança provoca um misto de emoções.

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“A gente fica muito feliz que as crianças vão e estão preparadas para sair. É preciso criar um vínculo que dá força e potência para elas estarem prontas para ir. Obviamente, ficamos com muita saudade e com o coração apertado. É um luto. Mas, quando você vê o que fez por aquela criança, vem a sensação de dever cumprido, de vitória”, conta Haint.

Shirley completa: “A única certeza que a gente tem é de que elas vão embora. Se fosse o filho de um amigo, a gente também devolveria. É a mesma situação: essas crianças não são nossas”, repete.

A publicitária afirma que a ruptura aconteceria em qualquer lugar, tanto em um abrigo quanto em família. Ela lembra que, na vida, sempre existe uma despedida, e que “não é poupando-as disso que vamos ajudar a situação”.

“As pessoas perguntam sobre a hora de ir embora, mas não perguntam sobre o cuidado durante o período, que é o que realmente importa. O processo é muito rico. O final faz parte”, relata Shirley, que conta com o apoio dos três filhos. “Estamos em constante formação. É uma preparação muito importante”, conta.

Encontros

É fundamental falar dessa formação. Quem entra no programa de acolhimento familiar tem encontros quinzenais com uma equipe dos institutos responsáveis pela colocação da criança. São debatidos temas predeterminados, onde se fala sobre os acolhimentos e as experiências são trocadas. “É um apoio incondicional”, descreve Shirley.

O governo (municipal ou distrital, no caso de Brasília) dedica um salário mínimo por criança para custear fraldas, leite, remédios e roupas. Além disso, há o apoio constante de assistente social e psicólogo enquanto um menino ou uma menina estiver em processo de acolhimento.

Shirley está ligada ao Instituto Fazendo História. Enquanto os pequenos estão em acolhimento familiar, o órgão vai atrás da família de origem (pai, mãe e irmãos) e da mais extensa (tios, avós, primos) para ajudá-los a recebê-los de volta.

“As pessoas têm muito preconceito com a família de origem. Muitas me perguntam: ‘Como a mãe pode ter feito isso?’, e, na maioria das vezes, as mães não quiserem isso. Entregar a criança é um ato de amor, não um abandono”, afirma Shirley.

Vontade surgida da indignação

A brasiliense Vânia Campos, aposentada de 56 anos, é casada e tem uma filha. A família atua como acolhedora desde o início do projeto: foram parte da primeira turma a fazer a formação em Brasília, em 2018.

A vontade de acolher surgiu com a vontade de ajudar crianças abandonadas e violentadas, algo que causava muita indignação em Vânia. Ela conheceu a instituição Aconchego e fez o treinamento com o marido, para se prepararem.

Sobre o desligamento das crianças, ela concorda que acontece uma mistura de sentimentos: “A gente sofre e chora, porque cria vínculos, mas também fica muito feliz. A gente estava lá para ajudar quando elas mais precisaram”.

Vânia conta que, “de vez em quando”, recebe um auxílio de R$ 450. Para ela, especificamente, isso não é o problema. O principal suporte é do instituto, que auxilia psicologicamente o acolhido, a família de origem e a família acolhedora.

A aposentada gosta de incentivar as pessoas a fazerem parte desse trabalho. “O acolhimento familiar é baseado no amor que o mundo atual precisa”, afirma.

Ela ainda finaliza lembrando do poema do Grande Milênio, de Alziro Zarur: “Os filhos são filhos de todas as mães, e as mães são as mães de todos os filhos”. E termina: “Se todos fossem criados com o amor de uma mãe, o mundo seria melhor”.

O acolhimento no Brasil

O promotor de justiça de Itapetinga, município da Bahia, Millen Castro, de 46 anos, afirma que “a ideia é colocar um número cada vez menor de crianças e adolescentes em instituições” e direcioná-las para o acolhimento familiar.

Ele conta que os acolhidos têm uma vivência maior de individualidade e familiaridade estando com outras famílias. “É mais interessante para uma criança ou adolescente viver em uma família, criando relações de afeto e tendo figuras de referência, criando um ritmo de vida normal”, explica.

No Brasil, essa prática ainda não é muito conhecida. Entretanto, Castro conta que países europeus e norte-americanos têm o acolhimento familiar como a opção mais indicada.

Millen Castro também relata que, de acordo com o censo Sistema Único de Assistência Social (Suas) de 2019, apenas 1.535 crianças estavam em acolhimento familiar, o que equivale a 4,7% do total. As outras estavam sendo acolhidas em instituições.

“Se uma criança precisa ser acolhida em um município que não tem serviço de acolhimento, procuramos uma família ou vaga em uma instituição em outra cidade. Isso acaba atrapalhando a criança e fazendo com que ela perca os vínculos comunitários de onde está, já que não acontece um preparo para esse rompimento”, relata Castro.

Ele também afirma que é importante discutir sobre esse tema, que, de acordo com o promotor, “ainda é um tabu”. Para isso, ele explica que é preciso desmitificar o acolhimento para a sociedade, já que as pessoas são muito resistentes por acreditarem que será mais sofrido para o acolhido.

“A gente precisa entender que construir vínculos de afeto nunca é prejudicial para a criança. É importante para elas terem relações de afeto”, reitera o promotor.

A coordenadora da área de Pesquisa e Difusão de Conhecimento do Instituto Fazendo História, Lara Naddeo, de 31 anos, concorda que o acolhimento familiar é “um serviço que oferece muita qualidade e, como é relativamente novo na assistência, possibilita muita inovação técnica na metodologia”.

“Cada criança e família faz com que a gente olhe para a metodologia de uma maneira crítica, repense-a e consiga renová-la”, explica Naddeo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que essa medida é temporária e excepcional, pode acontecer de maneira institucional ou familiar e só é aplicada quando as possibilidades de manutenção segura da criança ou adolescente na família de origem se esgotam.

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